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Em meados dos anos 2000, museus e colecionadores particulares gastaram milhões de dólares comprando obras de arte russas e ucranianas. Agora, a morte de um colecionador revelou a extensão das falsificações nesse mercado.
Os pais de Beatrice Gimpel McNally eram importantes colecionadores de arte suíços. Seu pai, Rudolf Blum, era apaixonado pelas pinturas e esculturas modernistas produzidas na Rússia, na Ucrânia e em Belarus na primeira metade do século 20.
O movimento ficou conhecido como avant-garde russa e inclui algumas das obras de arte mais caras do mundo.
“Ele comprava de tudo, qualquer coisa de que ele gostasse”, relembra McNally. “Ele fez muito sua lição de casa, convidando artistas e conversando com eles. Não havia dúvida de que o que ele comprava era sempre de primeira classe.”
Entre muitas das obras-primas da coleção da família, havia um El Lissitzky premiado —um quadro de um artista abstrato (1890-1941) considerado um dos mais importantes da história da Rússia.
Em 2005, o pai de McNally perdeu a visão e sua mãe, Leonor, deu continuidade à coleção da família, mesmo depois de desenvolver demência.
“Ela tinha muito orgulho da sua capacidade de identificar o que era bom”, conta Beatrice McNally.
Rudolf Blum morreu em 2009 e foram então chamados especialistas para avaliar a herança. Foi ali que tudo desabou.
“Um dos especialistas disse que toda uma série de pinturas era duvidosa”, relembra McNally. “Ficamos totalmente perplexas.”
A família havia comprado grande parte da sua coleção da Galeria Orlando em Zurique, na Suíça, administrada por Susanne Orlando. Era uma empresa de confiança dos Blum e que segue em operação até hoje.
Os registros da família mostram que eles costumavam pagar mais de 400 mil francos suíços (cerca de US$ 456 mil, ou R$ 2,26 milhões) por quadro.
McNally conta que sua mãe acreditava que “Susanne Orlando fosse sua amiga e só venderia a ela arte genuína, autêntica”.
Mas os advogados indicaram que aquelas compras não tinham valor. A galeria não respondeu ao pedido de comentários enviado pela BBC.
Leonor Blum ficou devastada com a ideia de ter sido enganada. Somente depois da sua morte, Beatrice McNally conseguiu investigar mais a fundo para saber se a coleção dos seus pais era ou não autêntica.
Ela descobriu que alguns dos quadros que seus pais haviam comprado da Galeria Orlando vieram da coleção de um comerciante israelense, nascido na União Soviética, chamado Leonid Zaks.
Fascinados há muito tempo pela coleção Zaks, três estudiosos decidiram investigar juntos sua proveniência. Eles são o especialista em estudos de proveniência Konstantin Akinsha, o comerciante de arte James Butterwick e o detetive de arte amador Andrei Vassiliev, que já havia exposto fraudes no passado.
Segundo Zaks, o fundador da coleção foi seu avô, o sapateiro Zalman Zaks, da cidade de Ekaterinoslav (atualmente, Dnipro), na Ucrânia.
Zalman Zaks se interessou por arte de vanguarda quando visitou um banco belga na sua cidade e começou a comprar quadros, mas os registros mostram que esse banco não existia.
Sua filha, Anna, deu continuidade ao empreendimento. Ela supostamente trabalhava como médica no interior de Belarus nos anos 1940, quando recebeu casualmente obras de artistas como Lissitzky e Alexandra Exter (1882-1949).
As obras eram presentes de camponeses agradecidos pelo seu tratamento. Mas, novamente, nenhum registro confirma nenhuma parte desta história.
A coleção acabou sendo levada para fora do país e permaneceu escondida por mais de 50 anos, até surgir novamente nos anos 2000.
“Nós examinamos toda a proveniência da coleção Zaks e todos os seus elementos são infundados —na verdade, nós podemos refutá-los”, afirma Akinsha.
Ele e seus colegas vasculharam os arquivos em busca de menções de eventos e pessoas relacionadas à extraordinária história secular da coleção da família Zaks. Mas não encontraram nada.
“Temos aqui um mito clássico de proveniência”, acrescentou Akinsha.
Depois que a proveniência foi refutada, Beatrice McNally pediu aos detetives de arte que autenticassem a obra de arte de Lissitzky da coleção Blum, originária de Zaks.
O artista russo ficou conhecido pelas suas pinturas abstratas e por desenvolver o movimento suprematista no início do século 20, ao lado do seu professor, Kazimir Malevich (1879-1935). O movimento abandonou as formas naturais e passou a adotar formatos geométricos.
Mas, nos anos 1930, o ditador soviético Joseph Stalin (1878-1953) considerou esse estilo incompreensível e ordenou que as obras fossem retiradas das paredes e armazenadas. Acredita-se que até 80 pinturas de Lissitzky tenham desaparecido naquela época.
Nos anos 1950, o Ocidente redescobriu o movimento e surgiu um novo mercado de arte. A demanda pelas obras era alta, mas a oferta era baixa, o que gerou um nicho importante para os falsificadores.
Em busca de respostas, consultei a diretora do laboratório Art Discovery em Londres, Jilleen Nadolny, a principal cientista especializada na investigação de falsificações da vanguarda russa. Ela usava a tecnologia para descobrir se uma obra de arte é autêntica.
Usando luz ultravioleta, Nadolny conseguia identificar os materiais específicos empregados em uma obra de arte específica e verificar se eles eram disponíveis na época em que a obra supostamente foi criada.
Movendo cuidadosamente o Lissitzky sob a luz ultravioleta, Nadolny afirmou ter observado “imediatamente” a verdade.
Ela identificou “fragmentos de fibras de alta luminescência na superfície”, datadas da segunda metade do século 20. Essas fibras só poderiam ter sido feitas depois da morte de Lissitzky.
“É como olhar para algo que deveria ser do século 18 e encontrar uma TV de tela plana ao fundo”, afirma ela. “Não é possível. Não pode ser. Não se encaixa.”
Para ela, os resultados foram tão claros que “apareceriam onde precisássemos para levar a questão à justiça”. E, em seu relatório enviado à BBC, Nadolny forneceu seu veredicto: “a pintura de Lissitzky é uma falsificação elaborada recentemente”.
A descoberta foi um golpe para McNally. Ela ficou chocada e furiosa por seus pais “terem sido enganados”.
Mas o impacto vai muito além da coleção de uma família. Para Nadolny, “existem muitos prejuízos” quando o assunto é a falsificação de arte.
“Dinheiro público é gasto para adquirir objetos para museus”, explicou ela. “Estudantes vão à escola para aprender sobre objetos que são guardados como autênticos e representam o registro histórico de uma cultura específica.”
“É o nosso registro histórico. E, se permitirmos que isso aconteça, estamos destruindo o nosso próprio passado.”
Pelo menos três obras de arte originárias da coleção Zaks estavam em exibição em museus públicos até recentemente.
As pessoas com olhar mais atento podem ter identificado um quadro chamado O Relojoeiro no filme Oppenheimer, vencedor do Oscar de 2024. Este quadro era considerado como sendo do pintor russo Ivan Kliun (1873-1943) e pertence à coleção do Instituto de Arte de Minneapolis, nos Estados Unidos.
Depois que a BBC informou suas conclusões, o museu retirou a pintura da sua exposição. O website da organização agora relaciona o quadro como “atribuído a Ivan Kliun” e não mais simplesmente com o nome do artista como seu autor.
O Museu de Arte de Cleveland, nos Estados Unidos, e o Museu Albertina de Viena, na Áustria, possuem quadros de outro artista, provenientes da coleção Zaks. Nenhum deles está em exposição.
Depois de meses tentando encontrar o atual responsável pela coleção Zaks, Leonid Zaks, ele finalmente entrou em contato e conseguimos conversar por telefone.
Ele conta que não tem registros em papel que confirmem a proveniência da sua coleção, mas que não tinha motivos para questionar a história da família, que a sua mãe havia deixado para ele por escrito.
“Em quem devo confiar, na minha mãe ou em um bando de estrangeiros?”, perguntou ele. “O que está escrito não é mais uma lenda, é um fato. Um fato incorreto, talvez, mas não apenas uma lenda ou uma história.”
Ele disse que sente por Beatrice McNally e pela sua situação difícil. Mas ressaltou: “eu mesmo não vendi nada para ela”.
Enquanto McNally procura aceitar a ideia de que seus pais foram vítimas da falsificação de obras de arte, seu filho, Erik, decidiu manter o falso Lissitzky.
O quadro é um lembrete da sua própria história familiar e da importância da proveniência.
A Dra. Jilleen Nadolny faleceu no final de 2023
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Fonte: Uol