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Um casal apaixonado caminha abraçado, trocando carícias e beijos, acompanhados por gritos comemorativos. Uma mudança súbita de enquadramento da câmera revela que dezenas de operários, pendurados sobre uma estrutura monumental de ferro e concreto, festejam a conquista amorosa dos pombinhos.
O ruído da imagem e a calça de cintura alta do rapaz não escondem que a gravação é da década de 1970. O que parece uma cena romântica ingênua era, na realidade, a estratégia do cineasta Jorge Bodanzky para filmar os trágicos bastidores das obras faraônicas do regime militar no interior do Brasil sem ser percebido pela censura.
“Gitirana”, filme de 1975, foi rodado em Sobradinho, no norte da Bahia, onde o governo construía a usina hidrelétrica no rio São Francisco. O retrato das condições precárias de trabalho são o pano de fundo para histórias de cordel, encenadas por atores.
O filme foi digitalizado e trechos dele são exibidos na exposição “Que País É Esse? A Câmera de Jorge Bodanzky durante a Ditadura Brasileira”, no Instituto Moreira Salles, em São Paulo, que reúne e expõe, pela primeira vez, toda a produção do cineasta de 1964 a 1985.
Antes de diretor, porém, Bodanzky foi câmera —e antes, fotógrafo. “A fotografia e a câmera de cinema sempre foram paralelas”, diz ele, aos 81 anos, enquanto caminha, satisfeito, pela montagem da mostra. Três telas com projeções dos filmes foram centralizadas na sala, enquanto as fotografias ocupam as paredes. “O som dá vida às pessoas. É diferente de um retrato.”
Bodanzky estava na universidade na ocasião do golpe militar de 1964. Trabalhou por pouco tempo como fotojornalista para o Jornal da Manhã, em São Paulo, antes de ganhar uma bolsa na Universidade de Ulm, herdeira da Bauhaus, e zarpar para a Alemanha. Ali, teve aulas com Alexander Kluge, que fundaria a cartilha do novo cinema alemão ao lado de Wim Wenders e Rainer Werner Fassbinder.
“Me formei como câmera cinematográfico. Todo mundo queria ser diretor, mas ninguém queria fotografar os filmes. Foi ótimo, porque trabalhei à beça”, diz, rindo. Pouco depois, mostrou uma filmagem em Super-8 a produtores da ZDF, o canal dois da televisão alemã, de comunidades indígenas afetadas pela construção da Transamazônica, obra defendida pela ditadura como indispensável para o desenvolvimento nacional —e nunca completada. A emissora concordou em financiar o filme.
Dali, nasceu “Iracema, uma Transa Amazônica”, um marco no cinema nacional por mostrar, com narrativas inventadas, problemas reais mascarados pela ditadura. O envolvimento entre um caminhoneiro e uma garota é o primeiro plano em uma paisagem destruída pela rodovia, que deveria rasgar o Brasil da Paraíba à cidade de Lábrea, no Amazonas.
“Eles vendiam a ideia de que a Amazônia era vazia, mas ela já estava muito bem ocupada por indígenas, ribeirinhos e ex-seringueiros, que foram expulsos ou mortos”, afirma Bodanzky.
O filme é protagonizado por Paulo César Pereio, que faz o caminhoneiro Tião Brasil Grande e por Edna de Cássia, que faz a jovem Iracema, que tinha apenas 14 anos quando foi descoberta pela produção.
Simplesmente apontar a câmera para a realidade e chamar a atenção, porém, era perigoso nos anos do AI-5. A solução foi criar personagens, e inseri-los na paisagem. “Certas coisas aconteciam naturalmente, outras eram provocadas pelos nossos atores”, diz.
Os aplausos ao casal apaixonado de “Gitirana”, por exemplo, não foram planejados. Os trabalhadores reagiram ao ver as carícias dos dois, e foram capturados pela câmera 16 milímetros que Bodanzky carregava no ombro.
Algo parecido ocorre em “Iracema”, quando os personagens negociam a contratação de trabalhadores que estão em uma carroça. No fim da tomada, ele conta, os homens reclamaram quando notaram que a proposta não era real.
A exploração do trabalho, religiosidade e os movimentos sociais são os temas mais retratados nos 35 filmes produzidos ao longo de sua carreira, nove deles no período da ditadura militar. “A ficção era um jeito de diluir a crítica, usando a sátira, a alegoria, e entornando a censura. Os elementos de ficção dinamizavam a realidade”, diz Thyago Nogueira, coordenador do departamento de fotografia contemporânea do IMS e curador da mostra.
Em suas viagens Brasil afora, Bodanzky estava sempre munido de outros dois equipamentos. Uma filmadora Super-8 que, diz ele, era como um diário, que guardava parte das imagens que seriam enviadas para a Alemanha. Algumas dessas gravações foram restauradas e são projetadas na mostra.
Mas foi a câmera fotográfica, companheira que antecedeu qualquer filmadora, que Bodanzky não abria mão. Com ela, tirava fotos para veículos de imprensa e para si próprio. Não por acaso, muitas das imagens exibidas na exposição mostram um Brasil emoldurado pela janela de carros, caminhões e aviões —cliques feitos sempre em movimento, durante o transporte de um local ao outro para prosseguir as filmagens. “Hoje eu tenho o celular”, brinca.
De uma Brasília em branco e preto ocupada por operários em busca de oportunidades a muvucas em torno de retratistas em cidades interioranas, as pessoas, diz Bodanzky, sempre foram o primeiro plano de suas fotos.
Até em cliques sem gente, como fotos feitas do alto quando a avenida 23 de Maio estava em construção, provocam para quem estaria passando, ali embaixo, por aquela paisagem quase distópica, em que uma única igreja se ergue em um vazio de terra e concreto.
Outro clique notável é de sua entrevista com Judith Malina e Julian Beck para a televisão alemã, ambos criadores do Living Theater, que inspirou o método do diretor José Celso Martinez, o Zé Celso, no Brasil.
Os artistas foram detidos em Ouro Preto pela polícia, acusados de subversão e porte de drogas. A prisão gerou comoção internacional, mobilizando personalidades como John Lennon, Yoko Ono e Bob Dylan, e a dupla foi solta, mas expulsa do país.
“Eu interfiro o mínimo possível no que estou retratando. Até hoje, meu cinema é independente, barato, simples, porque com poucos recursos você está menos preso às condições de um produtor”, diz.
Durante a ditadura, seus filmes circularam em cineclubes de universidades e sindicatos, mas hoje estão fora de catálogo e indisponíveis em streaming —mas serão exibidos em cópias restauradas numa mostra no próprio IMS, em maio.
Ele comenta a cota de tela para produções brasileiras, em vias de aprovação pelo governo. “Não pode um filme americano ocupar todas as salas, a mesma coisa no streaming. Mas eu acho que a lei sozinha não resolve. Cinema é hábito, e ainda não temos uma indústria no Brasil, infelizmente.”
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Fonte: Uol