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Parece desejável —para não dizer obrigatório— a todo arquiteto atual que seus projetos propiciem um sentimento de conforto por meio de uma clareza visual em cada ambiente onde se está, permitindo a rápida dedução de onde se encontra a entrada do edifício, a saída ou mesmo o banheiro.
Raros são os arquitetos contemporâneos que proporcionam a desorientação. Curiosamente, segundo a mitologia grega, a primeira encomenda feita a um arquiteto foi uma edificação dentro da qual o propósito seria se perder. Assim, Dédalo projetou o labirinto onde habitava o Minotauro.
No último século e meio, poucos se recordaram dessa gênese da arquitetura quando estiveram frente à folha em branco numa prancheta ou à tela do computador. Entre as exceções está Álvaro Siza Vieira ao projetar o Museu de Arte Contemporânea de Serralves, na cidade portuguesa do Porto.
Quem visitar o espaço cultural pela primeira vez pode se sentir desnorteados. Na sucessão das salas de Serralves, cada ambiente é parecido e diferente: cores claras predominam na tinta branca das paredes e no mármore dos rodapés e rodameios. Por sua vez, cada recinto tem uma dimensão e uma forma específicas —às vezes, suas geometrias são irregulares—, cada passagem entre uma galeria e outra é singular, cada solução para entrada da luz natural ou visada para o jardim é distinta.
O percurso do museu está longe de ser linear. Vira-se à direita, à esquerda, encontram-se algumas escadas para mudar de andar, depara-se com bifurcações. É normal que, no meio de Serralves, o visitante questione-se para qual lado está a entrada por onde passou minutos antes, e não saiba responder. Esta é a condição ideal para provocar aflição e comoção, palpitações e excitação.
Álvaro Siza, 90 anos, recebeu a reportagem em seu mítico escritório na rua do Aleixo, no Porto, no final da tarde de sábado, 24 de fevereiro, dia seguinte à cerimônia de abertura da nova ala do Serralves que contou com a presença do então primeiro-ministro de Portugal, António Costa.
Laureado com o prêmio Pritzker em 1992, o grande arquiteto português afirmou que seu pai havia nascido em Belém do Pará logo ao dar as boas-vindas ao espaço de trabalho, onde prefere passar inclusive os fins de semana.
Depois, Siza fez menção ao seu maior projeto construído no Brasil, a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, e lamentou que, em fotos recentes, as fachadas lhe pareciam sujas: “Betão branco precisa ser lavado”, diz ele, usando a expressão portuguesa para concreto.
Sobre a desorientação em Serralves, Siza diz que ela não era bem o propósito e seguiu com uma longa explicação sobre os obstáculos do processo de projeto e construção do museu original. Transcorrido entre 1989 e 1999, passou por diversas versões, ao sabor dos desejos das figuras políticas envolvidas, das questões orçamentárias e dos gostos dos diferentes curadores que passaram pela instituição.
Mesmo para um arquiteto consagrado como ele, a autonomia do autor do projeto é limitada, devido a demandas do cliente ou mesmo contingências alheias. “Embora eu perca-me”, diz Siza, em tom de confidência. “Quando eu lá vou a Serralves, eu perca-me, como você disse. Isso que estás a dizer do labirinto, de onde é que eu estou.”
O vínculo entre o arquiteto e a instituição manteve-se próximo ao longo dos anos —o museu fica entre o escritório e a residência de Siza. No parque de Serralves, ele também foi o artífice dos projetos da Casa do Cinema Manoel de Oliveira, em 2019, da Casa dos Jardineiros, em 2021, e pelo restauro do antigo palacete art déco da quinta que veio a se tornar um jardim público e centro cultural contemporâneo.
Em 2015, Siza confiou a Serralves uma parte do seu arquivo pessoal de desenhos e documentos. Na época, seu acervo foi dividido também com a Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, e com o Centro Canadense de Arquitetura, em Montreal.
A última encomenda de Serralves para Siza foi a extensão do museu, cujo intuito era ampliar a área expositiva e a reserva técnica para a coleção permanente. Durante a entrevista, ele relatou que os administradores da instituição pediram que essa ampliação não parecesse a construção de um anexo. Portanto, o acesso precisava permanecer o mesmo do edifício em funcionamento há mais de duas décadas.
Para contemplar tais aspectos, o arquiteto procurou no parque uma área na qual pudesse implantar a nova ala de três andares e decidiu por um trecho com poucas árvores —apenas cinco precisaram ser transplantadas durante a obra, o que facilitou a aprovação do projeto pelos órgãos públicos locais.
Algumas salas e escadas da nova ala têm disposições diagonais entre si devido ao esforço de salvar a vegetação preexistente. “Costumo dizer que quem desenhou o edifício, em parte, foram as árvores. Se não gostarem do projeto, não culpem a mim, culpem as árvores”, afirma Siza.
Entretanto, algumas dezenas de metros afastavam o museu concebido no final do século passado e a nova ala construída em um ano e meio na presente década de 2020. A isso se somava outro desafio: entre as duas partes passa a rua interna de veículos até a garagem do museu.
Siza solucionou tais adversidades com uma ponte. Isto é, um corpo suspenso, o qual internamente nem se percebe que se está sobre um considerável vão livre. Essa perda de referência entre a condição exterior e o espaço interior é próprio ao sentimento da desorientação.
Tal ponte pode ser igualmente descrita como um corredor longo, suficientemente largo, de paredes enviesadas, hermético apesar de ter uma janela com proporção quadrada de piso a teto, e uma instalação sonora da artista portuguesa Luisa Cunha, em que se ouve a frase “é o que é” em português e inglês, “it is what it is”.
Serralves é um edifício cujas fachadas não sobressaem aos olhos. Tal como no Labirinto de Creta, o meândrico percurso interno do museu subjuga a forma exterior. Todavia, Siza quis marcar a chegada à nova ala com um elemento sui generis: um portal em formato triangular.
Por trás dessa passagem de cinco metros de altura, há uma janela cujo contorno também é um triângulo isósceles, porém em menor escala e com o vértice mais pontiagudo voltado para baixo. Com a somatória dessas duas formas invertidas, emerge a imagem de categórica beleza que sinaliza a entrada à nova edificação, a qual, em uma justa homenagem, recebeu o nome de ala Álvaro Siza.
Duas mostras temporárias estão ocupando as salas recém-inauguradas. “Anagramas Improváveis” traz trabalhos artísticos pertencentes à coleção de Serralves.
Buscando estabelecer relações visuais e conceituais entre artistas e obras de diferentes décadas e origens geográficas, a curadoria do museu selecionou trabalhos dos brasileiros Cildo Meireles, Lygia Pape, Gretta Sarfaty e Anna Bella Geiger, dos italianos Giovanni Anselmo e Marisa Merz, do alemão Wolfgang Tillmans, do americano Merce Cunningham, do japonês On Kawara, além de diversos lusitanos, como Paula Rego.
Já “C.A.S.A. – Coleção Álvaro Siza Arquivo” apresenta uma profusão de desenhos, de maquetes e de fotografias de projetos construídos pelo português. Com a curadoria do arquiteto António Choupina, a exposição apresenta uma noção expandida de moradia, com as primeiras obras que Siza fez para a própria família, somadas a uma reflexão sobre projetos de grande escala enquanto casas de cultura ou de comércio ou de trabalho.
Não distante do grande modelo de madeira retratando a Fundação Iberê Camargo, encontra-se uma pequena e singela maquete do inédito projeto para o pavilhão de Julião Sarmento que Siza concebera para Inhotim, mas cujos planos estão em suspenso desde a morte do artista português em 2021. Nesta concepção destinada para Minas Gerais, Siza também usara o triângulo isósceles para recortar uma parede.
Em meio à abundância das formas arquitetônicas na exposição, capta a atenção um conjunto de desenhos antropomórficos feitos por Siza. São dezenas de croquis de pessoas e animais em movimento ou cenas banais e cotidianas. Os traços de Siza são sempre contínuos, mas levemente trêmulos.
É como se a regularidade e a irregularidade estivessem concomitantemente presentes nas linhas por ele riscadas —uma descrição pertinente aos seus projetos arquitetônicos.
Em meio à fartura de ilustrações, veem-se autorretratos nos quais, por vezes, aparece o rosto do arquiteto, por outras, somente suas mãos durante o exercício do desenho numa mesa de bar —um evidente ato metalinguístico.
Na pluralidade de temas esboçados, dignos de nota são as representações de centauros: os seres híbridos e imaginários com corpo de cavalo sob um tronco e uma cabeça humana. Desde a Idade Média são frequentemente confundidos com o morador do Labirinto de Creta, o Minotauro de corpo humano e cabeça de touro.
Os centauros de Siza conservam um sutil erotismo: esses seres miscigenados têm seus torsos contorcidos, entrelaçando-se com homens e forjando posturas inverossímeis. É como se o arquiteto ali nos revelasse as formas naturais no estágio prévio à desfiguração e à abstração.
“Aqui em Portugal, depois do jantar, a família permanecia ao redor da mesa, com as senhoras a costurar. Meu pai, que era professor, ficava a corrigir os trabalhos dos alunos. E meu tio Joaquim, não sei por quê, sentava-me ao colo e me ensinava a desenhar”, lembra Siza ao ser questionado sobre os desenhos.
Havia uma peculiaridade com Joaquim. “Ele era um péssimo desenhista. Na verdade, nem queria ser desenhista, mas foi um ótimo pedagogo porque nunca mais me saiu a vontade de desenhar.”
Assim, Álvaro Siza começou a desenhar aos sete anos seguindo as temáticas indicadas pelo tio. O primeiro mote foram os cavalos, em seguida os caubóis. Anos se passaram para a temática equina encaminhar aos centauros.
Em determinado momento, o tio incentivou o sobrinho a assinar os desenhos —AJO foi sua primeira alcunha artística e advinha dos dois primeiros nomes de Álvaro Joaquim de Melo Siza Vieira. Na exposição “C.A.S.A.” estão alguns desenhos de criança, os quais Siza disse sentir uma certa vergonha de expor tantas décadas depois.
O rol de recordações se seguiu com a lembrança dos anos de curso universitário, entre 1949 e 1955, com particular carinho a uma figura: “Tive a sorte de ter como professor o Fernando Távora, que depois foi um grande amigo por toda a vida. Uma pessoa extraordinária.”
Siza o descreveu como uma figura culta que nutria interesse tanto pelas novidades de sua época, tendo sido representante português em diferentes edições do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna e relatando o que se debatia a seus alunos do Porto, quanto pela tradição construtiva de vilarejos e zonas rurais do país, o que se comprova por sua participação no enciclopédico “Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal”.
Quando ainda aluno da Faculdade de Arquitetura do Porto, Siza escutou do diretor que ele “não fazia ideia do que é arquitetura antiga ou moderna.” A crítica foi o impulso para ir a uma livraria e comprar as revistas internacionais que chegavam à cidade.
Adquiriu quatro números da francesa Architecture D’Aujourd’Hui, que lhe introduziram às obras de Walter Gropius, Richard Neutra e Alvar Aalto. Este mestre finlandês despertou especial interesse em Siza, que o conheceu em seu ateliê durante uma viagem pela Escandinávia.
Após uma hora e meia de conversa e seis cigarros acesos pelo nonagenário dédalo, o vasto elenco de figuras citadas e episódios relatados terminou numa reflexão sobre as origens de tudo que concebeu na vida.
“Eu conheci tanta coisa. A gente tem uma capacidade limitada de voluntariamente usar o que estamos conhecendo, mas fica tudo na cabeça. Portanto, eu passei a ter mil influências que eu não controlo. Mas quando estou a trabalhar, o subconsciente é um grande amigo e nos ajuda.”
O jornalista viajou a convite da Fundação Serralves
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Fonte: Uol