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De Marilyns Monroes coloridas a reproduções de caixas de sabão em pó Brillo e latas de molho Campbell’s que contestavam a originalidade na era do consumo em massa, Andy Warhol se tornou o mestre da apropriação e mudou os rumos da arte ocidental.
Até que, três décadas após sua morte, em 2016, a fotógrafa Lynn Goldsmith processou a fundação que leva seu nome, dizendo que Warhol teria violado seus direitos autorais ao produzir serigrafias com o rosto de Prince. Elegante e sensual, o rapaz que cantava os devaneios libertinos em oposição ao belicismo de Ronald Reagan já era um fenômeno do pop mundial e tinha lançado há pouco o álbum “Controversy”.
O processo, com decisão favorável da Suprema Corte americana à fotógrafa, foi um marco. Ele pôs em xeque todo o curso da história da arte ocidental, ancorada na reprodução de símbolos culturais, e influencia uma série de litígios ao redor do mundo, inclusive no Brasil —onde Maxwell Alexandre, um dos maiores nomes da arte contemporânea nacional, conhecido por representar a periferia em suas pinturas, também é processado por um fotógrafo.
Goldsmith havia licenciado um dos retratos de Prince para a Vanity Fair. A revista, por sua vez, comissionou Warhol para fazer as serigrafias usando a foto como referência. Ela argumenta que foi só em 2016, com a morte de Prince, que descobriu a série com seu clique —uma delas, laranja, tinha acabado de ser publicada pelo periódico em homenagem ao cantor, com licenciamento da Fundação Andy Warhol.
Em primeira instância, a Justiça decidiu a favor de Warhol, argumentando que o artista teria agido dentro dos limites do “fair use”. É um conceito legislativo americano que permite o uso de uma obra por outro artista sob algumas condições —a principal é que a estética e o sentido da obra original tenham sido transformados sem finalidade comercial.
Mas a corte de apelação discordou, e a Suprema Corte concluiu, em maio passado, que a obra de Warhol tinha “substancialmente o mesmo propósito” da fotografia e que o artista violou os direitos autorais da fotógrafa. Segundo os juízes, a serigrafia não só reproduzia a foto como tinha fins comerciais, por ter sido estampada em uma revista.
A decisão chocou críticos, jornalistas e curadores de arte americanos. “Isso atinge diretamente a forma como os artistas de hoje foram educados para fazer e compreender a arte”, escreveu o Museu do Brooklyn, de Nova York, num documento apresentado à Suprema Corte e publicado no The New York Times.
“O ato de reter os elementos essenciais de uma imagem existente é todo o trabalho de Warhol. Há muita coisa que os juízes podem fazer com um toque de caneta, mas reescrever a história da arte não é uma delas. Eles precisam lidar com a apropriação como uma das grandes inovações artísticas da era moderna”, escreveu Blake Gopnik, crítico e historiador da arte, também no jornal americano.
No Brasil, o fotógrafo Márcio Carvalho está processando Maxwell Alexandre, depois que o artista pintou uma tela que reproduz personagens de três fotografias de sua autoria. A tela seria vendida por R$ 375 mil, segundo o processo.
Procurado desde o início de dezembro por telefone e WhatsApp, Alexandre não se manifestou até a publicação desta reportagem. Seu advogado, Álvaro Piquet, afirmou que o artista não vai se manifestar porque desconhece o teor do processo. A galeria Millan, que o representa, não quis comentar o caso.
O caso desperta discussões jurídicas complexas. Segundo José Carlos Netto, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo especializado em direitos autorais, “qualquer obra, para ser utilizada, demanda autorização prévia e indicação de autoria”.
Ele diz que uma pintura feita a partir de uma fotografia é enquadrada como uma “obra derivada” —isto é, surge a partir de outra preexistente e, por isso, precisa de autorização do autor. A exceção, para a legislação brasileira, é quando não é possível identificar a autoria da obra original.
Mas há uma brecha na lei, chamada de “direito de citação”. Ela permite o uso de fragmentos de um trabalho artístico para fins de estudo, crítica ou discussão. Nas artes plásticas, a reprodução pode ser integral desde que “não seja o objetivo principal da nova obra e que ela não cause prejuízo injustificável ao interesse do autor do original”, segundo Netto.
A comercialização é um dos fatores mais importantes para um julgamento de plágio, porque ela pode “inviabilizar uma forma de exploração econômica da obra original”, segundo o advogado Rodrigo Salinas, membro do Conselho Especial de Direitos Autorais da OAB, a Ordem dos Advogados do Brasil.
A legislação americana, dizem os especialistas, é menos restrita do que a brasileira. Ela é elaborada a partir de decisões de tribunais ao longo dos anos, prática conhecida como jurisprudência. O princípio do “fair use”, debatido no caso de Warhol, não existe no Brasil, onde o rei da arte pop precisaria de autorização da fotógrafa para fazer suas serigrafias, segundo Salinas.
A linha que diferencia o plágio da inspiração fica mais tênue com as redes sociais, na avaliação de Giselle Beiguelman, professora da Universidade de São Paulo e crítica de arte. “Precisamos discutir uma ética para os tempos das redes, que não legitime a apropriação sem critério algum, mas que respeite um processo que é já intrínseco à arte contemporânea.”
Professor e pesquisador de arte e política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Miguel Chaia lembra que Pablo Picasso “foi um dos primeiros artistas a usar a colagem na pintura, incluindo pedaços de revistas e textos” em suas obras.
“Existe a história da pintura, da fotografia e da pintura com a fotografia. A arte pode se apropriar da imagem fotográfica”, diz ele. “O conceito de arte é polissêmico. Não é um fechado, como a lei da gravidade. Como diria Mário Pedrosa, a arte é o exercício da liberdade.”
Para a pesquisadora e crítica de arte Mirtes de Oliveira, o circuito em que uma obra circula é essencial para o debate. Como exemplo, ela aponta que, no caso da apropriação de máscaras africanas por Picasso, o contexto do colonialismo deve ser levado em conta, diferente da arte pop de Warhol.
Em meio ao avanço do capitalismo financeiro e a corrida midiática, o filósofo Guy Debord, um dos principais agitadores do Maio de 1968 na França, afirmou que, na “sociedade do espetáculo”, as imagens se tornaram mediadoras das relações sociais entre as pessoas.
Diante disso, diz Chaia, o professor da PUC, “é impossível o artista ficar imune”. “Cabe colocar em xeque os padrões e parâmetros da sociedade estabilizada. O plágio precisa ser analisado na perspectiva do tempo em que se fala.”
Sua visão é reforçada por Bieguelman, da USP. “Se cada caso é um caso, então não existe nenhum tipo de contrato social”, diz ela, sobre a lei de direitos autorais. “Nossas vidas são medidas por imagens, mas ainda operamos com regras de um mundo onde a imagem era um privilégio e fácil de controlar.”
Para o fotógrafo Christian Cravo, que já levou à Justiça o uso comercial indevido de seu trabalho, as redes facilitaram a apropriação de imagens por gerações mais jovens de artistas, que construíram suas carreiras na era digital.
“Vik Muniz só usa iconografias pré-existentes em suas colagens, ou de domínio público”, ele diz, sobre outro dos mais relevantes artistas brasileiros da contemporaneidade, conhecido por fazer colagens enormes com micro fragmentos de imagens.
Gustavo von Ha, artista cuja obra também se caracteriza pela apropriação de outras imagens para criar colagens digitais, diz que descobrir a origem do material que está circulando na internet e dar os créditos é um principio ético.
“Nas redes, parece que existe outro pacto. Já fiz vários trabalhos com apropriação, de obras de Tarsila do Amaral e Leonilson, por exemplo, e pedi autorização para as famílias, porque é diferente de um meme, que é feito de autorias múltiplas e coletivas.”
Além da lei, Von Ha diz se basear em acordos estabelecidos entre artistas e argumenta que utilizar uma foto que circulou em jornais para gerar uma reflexão social seria diferente de usá-la para criar e vender uma obra. “Os limites são elásticos, são borrados, porque a gente está numa época inundada por imagens, mas se a foto é preservada, reconhecível, o fotógrafo está no direito dele”, diz.
Cristiane Olivieri, advogada especialista em direito cultural, não considera as obras de Alexandre e Warhol como plágio. “A criação é fruto da geleia geral em que vivemos. É por isso que existe o domínio público. A ideia é que essa obra vai remunerar o autor e seus descendentes por um tempo, e depois essa obra volta para essa geleia geral”, diz, ao refletir sobre o princípio filosófico que rege a lei dos direitos autorais.
Olivieri cita ainda outro caso emblemático, o de Richard Prince, conhecido por trabalhar com colagens. O artista foi processado pelo fotógrafo Patrick Cariou por ter acrescentado, a uma série de cliques em preto e branco de rastafáris, guitarras elétricas e bolinhas azuis, além de caras e bocas aos corpos seminus. A corte americana decidiu a favor de Prince, argumentando que ele havia feito alterações significativas nas fotografias.
“Transformadas por Prince, as fotos originais deixaram de ser documentação de rastas, mas viram uma provocação no jogo de ‘identifique a arte’, criado pelo mictório de Duchamp”, escreveu o crítico Blake Gopnik. “Quando Prince pega uma guitarra elétrica de outra fonte e a põe nas mãos de um dos rastafáris de Cariou, ele comenta o poder que os artistas têm, desde Warhol, de misturar e combinar imagens pelo intercâmbio de fronteiras culturais.”
Há oito anos, Prince foi processado novamente, por legendar fotografias de diferentes autores e enquadrá-las em modelos do Instagram, como se fossem publicações da rede social. Em sua defesa, ele argumentou que a apropriação queria desafiar a dinâmica das plataformas digitais.
Caso semelhante aconteceu com Regina Parra, em outubro passado. Ela precisou retirar uma obra de uma mostra na Pinacoteca, além de recolher os catálogos da exposição, porque havia utilizado uma fotografia de uma usuária qualquer do Instagram, Andrea Sahyoun, em uma composição sobre o prazer feminino. Parra disse que firmou um acordo com a internauta, mas não quis detalhar o caso.
“Nesse caso, trata-se do direito de imagem, vinculado ao direito da personalidade e da privacidade. O fato de ter sido colocado no Instagram não dá direito à artista de uma apropriação, especialmente se a pessoa for reconhecível”, diz Olivieri, advogada.
“Ele [Alexandre] mudou o suporte. É outra coisa. Tem uma contextualização, uma reflexão de ter feito essa obra copiando a fotografia. Vale a máxima do [pintor Henri] Matisse. Quando perguntaram para ele onde ele via uma mulher roxa, ele respondeu que não era uma mulher. Era uma pintura”, ela acrescenta.
Outro exemplo é o caso de Luc Tuymans, acusado de plágio por uma pintura hiperrealista de uma fotografia do político de extrema deita belga Jean-Marie Dedecker, feita por Katrijn Van Giel. Para Oliveira, a crítica, a apropriação e transformação de imagens é essencial à produção artística contemporânea.
“Warhol queria desdizer a suposta pureza do modernismo e a ideia de obras absolutamente originais. Quem é o dono de uma imagem produzida em massa?”, diz ela. “Independente disso, existe uma questão legal. A cada apropriação surge uma nova obra, mas a legislação deve ser razoavelmente respeitada. O artista, como todos os indivíduos, está submetido às regras sociais.”
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Fonte: Uol