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“A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos. O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.”
Com este forte parágrafo começava um texto de quase 7 mil caracteres escrito pelo poeta e escritor Oswald de Andrade e publicado há exatos 100 anos, em 18 de março de 1924, no jornal Correio da Manhã. Chamado de “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, ou simplesmente “Manifesto Pau-Brasil”, tornou-se um documento importantíssimo para a história da literatura brasileira.
“Seu principal legado é a defesa de uma outra língua literária, muito mais sintética, focada na tradição oral, que tem como falante não o escritor erudito mas a população comum, o brasileiro comum. Essa outra linguagem representa um outro ser, que é o homem nacional”, comenta à BBC News Brasil o escritor e professor universitário Miguel Sanches Neto, reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
“A partir do manifesto não existe mais espaço para uma literatura com linguagem erudita, linguagem balofa, linguagem barroca. Ele funda um novo idioma, muito mais próximo da fala nacional. E isso modifica completamente a percepção do texto literário. O conceito do literário se modifica de maneira violenta a partir da Semana de Arte Moderna, mas principalmente a partir do ‘Manifesto Pau-Brasil’ isso vai ser um mote para a literatura moderna brasileira”, complementa Sanches Neto.
“A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos”, diz o texto.
O manifesto foi escrito todo em tom festivo e em prosa poética. Espelhando e parodiando um estilo próprio de vanguardas da época, Oswald lançou mão de uma linguagem telegráfica, muito representativa do futurismo e do cubismo.
Em essência, o autor pretendia mostrar que era hora de o Brasil se tornasse um país exportador de cultura, da mesma forma como havia sido, no século 16, o exportador de pau-brasil, a árvore. O manifesto deixa claro que havia um entendimento modernista que a poesia brasileira estava no mesmo patamar da europeia —e poderia vir a influenciá-la, invertendo a tendência dos tempos anteriores. “Acertar o relógio império da literatura nacional”, pontua o texto.
Professora de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e tradutora, a pesquisadora Sandra Mara Stroparo define à BBC News Brasil o Manifesto Pau-Brasil como uma “virada de página”, com “a real modernização da poesia brasileira”.
“Tem a ver com questões temáticas e de forma. Mas, principalmente, tem a ver com uma espécie de página virada, porque ainda havia um restinho de ranço, algumas questões de influência e tradição europeias [mesmo após a Semana de 22]”, comenta ela.
Depois que essas ideias foram absorvidas pela intelligentsia, a literatura brasileira mudou de fato com, segundo Stroparo, “a consciência de que a poesia que eles vão produzir já não é uma poesia que nem precisa, nem lamenta e nem espera o olhar do europeu”. “É uma poesia essencialmente brasileira”, afirma.
“Oswald de Andrade, com o Manifesto Pau-Brasil, manda uma espécie de recado para todos os escritores da incipiente república na década de 20: chega de eruditismo”, afirma o professor Vicente de Paula da Silva Martins, da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA).
“Para ele, a poesia deveria ficar longe do estilo pomposo que caracterizou tanto os simbolistas e os parnasianos no século 19, devendo ser agora ‘ágil e cândida’, tão leve e sábia como ‘como uma criança’. O manifesto destaca que o espaço do labor poético deve ter a cor local”, complementa.
Publicação e repercussão
Mas não é possível entender o impacto do manifesto imaginando que foi como um textão de Facebook ou um reels de Instagram que viralizou no WhatsApp da galera. “Em um mundo sem TV e com pouco rádio, quase nenhum, apenas com jornais, podemos imaginar que a repercussão era limitada”, avalia Stroparo.
“E a primeira repercussão foi no Rio de Janeiro [de onde era o jornal], que já havia feito ouvidos moucos para a Semana de Arte Moderna. E vai fazer também para os manifestos de Oswald de Andrade”, completa a professora.
Autora de, entre outros livros, “Semana de 22: Entre Vaias e Aplausos”, a jornalista e escritora Marcia Camargos diz que a recepção do manifesto foi “da mesma forma que se deu a recepção da Semana de 22”, ou seja, “o grande público não tomou muito conhecimento na ocasião.”
Era natural que o buzz ficasse apenas entre os envolvidos na questão, afinal, e que o real significado daquela publicação só fosse entendido décadas mais tarde, com estudos acadêmicos e análises das produções culturais subsequentes.
“Na cultura tudo vai se amalgamando aos poucos. Não dá para medir o impacto de um evento cultural ou artístico apenas pelo momento que ele ocorre. Eles podem ecoar durante muito tempo ou serem resgatados a qualquer momento. As narrativas estão sempre em movimento”, explica o educador Francione Oliveira Carvalho, professor na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e na Universidade de São Paulo (USP).
Ele salienta que o manifesto “interferiu no pensamento e na produção artística” que veio a seguir e seu impacto na poesia e na arte brasileiras foi, “aos poucos, se revelando e materializando-se.”
“Aquilo não teve nenhum impacto maior na sociedade. Na roda de modernistas e entre os vanguardistas, é claro que causou furor e foi bastante discutido”, acrescenta Camargos. “O manifesto veio de alguma forma responder aos anseios do [escritor] Mario de Andrade, que estava muito preocupado com os colegas de 22, os modernos que vinham beber nas fontes de Paris.”
“Ele se preocupava com o afastamento das raízes brasileiras e o ‘Manifesto Pau-Brasil’ de alguma forma veio devolver o Brasil para aqueles brasileiros”, afirma a jornalista e escritora.
Professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), o pesquisador André Gomes lembra que “a despeito da realização da Semana de Arte Moderna em 1933, o gosto artístico brasileiro continuava, de certo modo, vinculado a manifestações parnasianas e simbolistas que ainda estavam presentes naquele momento, sobretudo em um reduto oficial, a Academia Brasileira de Letras”.
Por isso, ele avalia que o manifesto “foi recebido com escândalo pela elite paulistana”. “A publicação [do texto] foi importante porque marcava uma tomada de posição de uma ala dos modernistas, os que se caracterizaram pela oposição a certa visão ufanista do Brasil que se desenhava na emergência do chamado verde-amarelismo e que tinha como representantes figuras como Plínio Salgado, Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia, etc.”, explica.
Sanches Neto diz que inicialmente o manifesto foi tachado de polêmico. “São polêmicas de duas naturezas: as pelas ideias contidas nele, com a defesa do nacional, da miscigenação, dos indígenas contra os colonizadores, e há também a polêmica causada pela própria linguagem extremamente direta, agressiva”, ressalta. “Não era própria de uma literatura até pouco tempo vigente no Brasil.”
“Então ele revoluciona pelas ideias, essa defesa do local e do primitivo em oposição ao europeu. E escandaliza pela linguagem direta, aforística, desabusada e irônica, que tem também um caráter polêmico”, analisa o escritor.
O crítico de arte Marcos Rizolli, pesquisador e professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), diz que o manifesto “foi recebido de forma pendular”. “De um lado, as forças de tradição, muito presentes na sociedade de cultura paulistana que compreendia o gosto pela arte acadêmica; de outro, os modernistas, que representavam as forças de inovação, propondo uma radical ruptura com os valores estéticos ainda circulantes”, compara ele.
“Curioso que os tradicionalistas exerceram uma crítica um tanto ideológica, em nome da ‘arte do passado’, enquanto os modernistas, de tão encantados com seus anseios de arte, não conseguiram reconhecer que o acontecia por aqui desde 1922 já era, de algum modo, passado recente na Europa”, critica.
Depois do Pau-Brasil
“O Manifesto Pau-Brasil revisa a história cultural do Brasil e a necessidade de rever o que fazia do Brasil ser o Brasil. Ou seja, atualiza os imaginários sobre o que é ser brasileiro. Um desejo de uma cultura menos intelectualista e mais terrena, que brotasse literalmente do chão e de seus paradoxos”, pontua o educador Carvalho. “Não é à toa a escolha do Pau-Brasil para nomear o manifesto.”
Ao analisar o que significou o Manifesto Pau-Brasil, a professora Stroparo entende que sua importância está “no momento histórico” e na “escolha das questões” nele contidas e, principalmente, “no impacto radical que só um manifesto pode impor”.
Gomes ressalta que o manifesto, de “caráter iconoclasta” acabou reverberando “por muitos anos na produção artística do Brasil”. “Bons exemplos estão presentes, por exemplo, no Tropicalismo, a convivência sempre tensa entre o moderno e rudimentar nas artes brasileiras, o que já estava indiciado nesse movimento”, comenta o professor.
O poeta e tradutor André Capilé, professor de Literatura Brasileira na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), diz que também entende esse manifestando tomando “maior corpo” nas consequências “da poesia brasileira de modo geral”. “Em particular com os concretos e, posteriormente, com a Tropicália”, afirma.
Rizolli concorda: o legado foi “transversal, entre as diferentes modalidades artísticas”. Significou “a adoção de novas formas de interpretar e apresentar a vida”. “Saem de cena os grandes temas e entram na pauta expressiva as linguagens do cotidiano”, contextualiza.
Para Capilé, o Pau-Brasil, “além de definir novos princípios para a produção da poesia, também realiza uma espécie de revisão cultural do país, criando a valorização do elemento primitivo”. “E tem o aspecto da escrita, uma espécie de prosa poética, com frases curtas de efeito”, destaca o poeta.
O polemista e genial Oswald
A publicação do documento, de qualquer forma, consagrou Oswald de Andrade como grande intelectual daquele grupo de modernistas. “O manifesto é o protagonismo de Oswald como espécie de pensador estético da cultura brasileira”, define Sanches Neto.
“Ele virou um ícone da festiva mudança professada pela Semana de Arte Moderna, mas que não se consolidara”, diz o professor Francisco Vicente Júnior, da Universidade Estadual Vale do Aracaú (UVA).
“A sua peculiar ironia, bom sintoma de uma inteligência crítica privilegiada, fez dele o grande porta-voz do movimento modernista”, completa Rizolli. “Sua notória lábia seduzia seus pares artistas, músicos e poetas. Seu poder argumentativo, trazia para o centro das ambições modernistas as figuras empresariais mais eminentes, que iriam irrigar com recursos e influências as mais amplas esferas da sociedade da época.”
O crítico e professor ainda acrescenta que Oswald “soube dialogar muito bem com os meios de comunicação.”
“É inegável que Oswald tenha se tornado uma das figuras centrais do modernismo brasileiro, mas na outra ponta a gente tem o Mario [de Andrade]. Eles dividem o protagonismo”, lembra Capilé. Para o professor, Oswald acabou fazendo o papel de polemista, com sua leitura de mundo e sua inteligência fina na leitura do país.
“Nesse aspecto, ele propôs um fazer poético e também um modo de construir ideias sobre o Brasil. E, assim, apresentou as suas características mais interessantes, sempre colocando em xeque o próprio cenário da cultura brasileira.”
“A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna. Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem antologia. Bárbaros crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil”, dizem as últimas frases do Manifesto Pau-Brasil.
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Fonte: Uol