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Os adultos já não se impressionavam mais. Tornou-se comum ver aquele bando de crianças falando palavras estranhas, correndo e simulando lutas constantes como se suas vidas estivessem em risco. Apensar da cena anárquica, na qual os corpos mirrados pareciam ricochetear entre si, havia uma certa ordem, uma espécie de vez para cada um fazer seus movimentos. Socos, chutes, esquivas rápidas, às vezes saltos difíceis executados e, no clímax, as mãos pareciam disparar projéteis invisíveis. Não era briga, isso ficou evidente. Parecia mais apresentação teatral de alguma obra da qual eles e elas, os adultos, não tinham conhecimento.
Na minha rua, Dragon Ball era brincadeira. Queria que Akira Toriyama tivesse visto eu e meus amigos fazendo de nossos corpos a materialização de sua obra. Sem dinheiro para os mangás e com a limitada transmissão do anime nos canais abertos de televisão, cabia à nossa imaginação dar continuidade a saga de Goku, seus amigos e inimigos enquanto a TV a cabo se matinha como sonho distante —e nela residiam os episódios atualizados do desenho.
Crescia sempre uma agonia ao ver as capas de revista com novos personagens que não sabíamos o nome ou os poderes e, mesmo assim, alguém dizia “Eu sou ele, hein!? Não é para ninguém pegar”. A rotina, quando finalmente saíam novos episódios, revelava-se uma só: assistir e, sem demora, ir para rua performar o capítulo. E que performance.
Crianças de outras ruas achavam estranho, a priori. Depois aderiram também. Tudo precisava ser organizado com precisão para não virar violência e, consequentemente, briga. Este é um ponto importante de se descrever. As lutas se desenhavam como coreografias e a maestria estava em conseguir reproduzir da maneira mais fiel os golpes dos personagens, sem contato físico direto.
As mãos se aproximavam em forma de punhos fechados, mas não havia atrito. Os pés passam perto da cabeça como facão a cortar galhos, porém sem o risco de acertar o adversário. Já os golpes especiais —como o “Kamehameha” performando por Goku, personagem da série, ou o “Makankosappo” de Piccolo— invisíveis fluíam pelo ar e o imaginário seria o árbitro a dizer se haviam acertado ou não o alvo. Caso concordassem os dois lutadores de que, sim, o golpe tinha sido bem-sucedido, o ferido aceitava a derrota. Era importante ter esta “ética da brincadeira de lutinha” na rua para que o episódio terminasse com êxito. Para que a performance tivesse valido o esforço todo. E que esforço.
O vigor gasto pelas crianças evidenciava a importância do brincar com o que se tinha de mais pessoal e valioso: sua própria energia corporal. Além de contribuir para nossa saúde física, também havia ali a sensação de catarse para os estresses da escola e da vida dura desde cedo. Certo alívio para as tantas faltas que nos acometiam. Nem todos os pais gostavam de ver seus filhos e filhas enfrentando nêmesis imaginários e voando sem sair do chão. Fosse pelo risco de um atropelamento, receio de que se tornasse uma batalha real ou por questões de fé religiosa. Tempos em que quase tudo “era do diabo”. Tempos que parecem voltar.
Para as crianças, não havia diabos nem deuses, apenas a coragem e persistência na imagem dos “Guerreiros Z”, o poder gigante nas figuras de vilões como Freeza, Cell e Majin Boo, sempre derrotados no final, além da presença de personagens femininas que incluíam garotas na brincadeira —como a poderosa Androide 18, a genial Bulma ou a destemida Videl. Quando, em outros escritos, abordei a importância do imaginário das crianças de periferia, falava também de vivenciar a infância sem o ceifar de ideias oriundo das privações inevitáveis de uma realidade pobre. Nesses momentos, voavam, lutavam para salvar o mundo e, sem dúvida, sentiam-se parte dele. Parte não mais à parte.
Se pudessem hoje, essas crianças, reunir todas as esferas do dragão espalhadas pelo mundo, talvez pediriam a Shenlong que mostrasse a Akira Toriyama que Dragon Ball, aqui na quebrada, era brincadeira de rua.
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Fonte: Uol