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Dizer que a literatura de mulheres está numa fase de excepcional qualidade já é lugar-comum. No Brasil, jovens e ousadas escritoras têm se juntado a uma geração anterior, de carreira já consolidada e qualidade reconhecida. Desse segundo grupo faz parte Maria Esther Maciel, que lança mais um romance de importância: “Essa Coisa Viva”.
Escrever sobre a mãe tem sido recorrente entre autoras contemporâneas mundo afora. “A Mulher dos Pés Descalços”, de Scholastique Mukasonga, espécie de homenagem da escritora à genitora que morreu nos confllitos étnicos de Ruanda, foi dos primeiros a ter sucesso internacional.
Já Annie Ernaux, ao final do forte e belo “Une Femme” (uma mulher), narrativa sobre a sua mãe ainda não publicada no Brasil, afirma a indefinição dessa espécie de subgênero ao dizer que a obra não é uma biografia ou um romance —talvez algo entre a literatura, a sociologia e a história.
Poderíamos dizer o mesmo do novo romance de Maciel, retrato de uma sociedade perversamente conservadora. Tudo com temperos mineiros, como a autora.
“Essa Coisa Viva” toma a forma de uma carta da protagonista dirigida à mãe morta. Esta vai sendo escrita aos poucos: por vezes em ritmo acelerado, quase como um diário, por vezes esquecida em algum lugar para ser depois retomada. Seja como for, é preciso terminar aquele relato que jamais será lido pela destinatária.
Só que essa mãe não merece ser pranteada: era um monstro. Até lembrar dela provoca ansiedade na personagem-título.
Como se não bastassem as crueldades lembradas, o leitor é apresentado a uma figura grotesca, sempre com um cigarro entre as mãos e a dentadura que se deslocava “numa espécie de dança macabra”. Só muito ódio para descrever a mãe morta com tal imagem —a famosa “Carta ao Pai” escrita por Franz Kafka a seu pai despótico é, digamos, um buquê de flores em comparação.
A protagonista é Ana Luiza, uma garota do interior de Minas que vive entre a fazenda com pamonhas e mingaus e a mediocridade dos vizinhos que pouco têm a fazer além de se ocupar da vida alheia. Vai crescendo sob o domínio autoritário da mãe, que prefere o filho homem. Punições e violência se misturam a lêndeas e piolhos para tornar sua infância insuportável.
Os anos passam, e a moça deixa a opressão da cidade pequena para estudar. Vai para Belo Horizonte e se torna uma importante botânica, que casa, descasa e viaja pelo mundo.
Diferentemente de outras obras de Maciel, desta vez não são os animais que povoam o seu livro, ainda que estes eventualmente circulem pela narrativa, mas as plantas. São elas as espécies companheiras, consoladoras, capazes de atenuar os momentos difíceis que as lembranças provocam.
Todo o relato é construído durante o isolamento causado pela pandemia do coronavírus. As pessoas estão isoladas, a solidão é maior. O Brasil vive a violência de uma Presidência autoritária e desumana, “um país que enlouqueceu sob […] um louco desgovernado e cruel”. São tempos que precisam ser lembrados, e narrados, para que se conheça o perigo e a dor da falta de liberdade, da obediência forçada.
Ao tom de memória opõe-se, em rara habilidade narrativa, a descrição realista de fotos com os personagens da vida vivida, incluindo o pai que tentava protegê-la. Surgem, vez ou outra, episódios que têm lá sua graça.
“Se lhe conto essas coisas, é para trazer um pouco de leveza para essa carta que não é bem uma carta e para aliviar o incômodo que ela está me causando. Agora que a iniciei, preciso ir até o fim, custe o que custar.” Chegar a esse final é o grande desafio que o romance cumpre.
Em entrevista recente, Maciel falou que passou por um tempo de “paralisia criativa”. Se foi realmente assim, não se tratou de paralisia, mas de um período de acúmulo criativo. “Essa Coisa Viva” é o melhor de seus romances até agora.
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Fonte: Uol