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Os excrementos de uma mulher formam uma cabeça que passa a assombrá-la, perseguindo-a em vasos sanitários. A figura monstruosa cresce e, quando se torna uma versão jovem da personagem, condena-a a tomar seu lugar dentro dos encanamentos.
Um abajur em formato de coelho leva toda uma família à ruína. Quando o neto de um empresário toca na luminária, passa a ter alucinações com o animal, que rói seu cérebro.
Um prédio abandonado, vendido a preço de banana, atormenta seus inquilinos, um dos quais acaba esquartejado em uma panela de sopa.
As histórias estão em “Coelho Maldito”, primeira obra da sul-coreana Bora Chung publicada no Brasil. Em dez contos perturbadores, a coletânea expõe até que nível a crueldade pode chegar e o caráter destrutivo da ganância humana.
“Queria que todas as coisas horríveis e injustas do mundo não acontecessem e que pessoas inocentes não tivessem que sofrer. Não posso mudar a realidade mas, pelo menos nas minhas histórias, posso matar as pessoas más e me divertir durante o processo”, diz a escritora.
Chung ainda usa essas narrativas para questionar a estabilidade de instituições como a família e o casamento, enfatizando como elas privilegiam os homens em detrimento das mulheres.
Um exemplo é “Menorreia”, que acompanha uma jovem que começa a fazer uso de anticoncepcionais para regular o fluxo menstrual. Depois de alguns meses tomando pílula, ela recebe o diagnóstico de que está grávida mesmo sem ter tido relações sexuais e precisa arranjar um marido que aceite ser pai da suposta criança.
O enredo foi inspirado em uma experiência da própria Chung. Aos 28 anos, ela começou a ter sangramentos anormais por causa de um cisto no ovário. Quando marcou uma consulta com um ginecologista, sua mãe quis impedi-la de ir por ela não ter um marido.
“Eu era legalmente, fisicamente e mentalmente uma adulta, mas meus ovários claramente pertenciam a um cara que eu nunca nem conheci”, afirma. “Partiu meu coração saber que muitas leitoras de diferentes países se identificaram com a história e me disseram que tinham tido experiências semelhantes.”
Publicado na Coreia do Sul em 2017, “Coelho Maldito” foi lançado nos Estados Unidos em 2022 e foi finalista do International Booker Prize naquele mesmo ano. A autora diz que a coletânea traz trabalhos que escreveu em diferentes fases da vida, entre 1998 e 2016.
Os contos mesclam gêneros literários como terror, contos de fadas, fábulas e ficção científica, mas ela afirma que o folclore é o seu favorito. “Cresci ouvindo mitologia coreana de 1.500 a 2.000 anos atrás. Essas histórias se passam em regiões que conheço da Coreia, e seus personagens são coreanos, mas que naquela época aparentemente viviam com dragões, tigres e todo o tipo de divindade”, afirma. “Adoro a sensação de que magia e mitos vivem e respiram ao meu redor.”
Irônica, ela ressalta, porém, que não existe uma praga idêntica à do conto que dá nome à coletânea no folclore de seu país. “Pensei que alguém podia tentar reproduzir, então inventei tudo que está no conto. Você pode personalizar um abajur para que ele tenha a forma de um coelho e tentar fazer o que quiser, mas nada vai acontecer”, diz.
Sua produção remete a uma onda recente de literatura de horror feminista, que tem a americana Carmen Maria Machado, autora de “O Corpo Dela e Outras Farras”, como uma de suas principais representantes. Mas Chung pontua que sua escrita nasceu apenas da sua experiência como uma mulher que mora na Ásia hoje.
“Como ninguém me disse o que não escrever, escrevia para mim mesma, sobre as coisas que sabia, e isso acabou sendo um terror feminista. É triste”, afirma. “Silenciar a voz feminina é uma característica universal do patriarcado, e todos nós conhecemos os horrores que acontecem sob esse manto de silêncio forçado.”
Independentemente de seu gênero, porém, todos os protagonistas dos contos se deparam com algum tipo de maldição que os condena à ruína. Eles sempre parecem carregar certa resignação com esses cenários. Não há finais felizes, mas a escrita de Chung, como pontuou uma crítica da New Yorker, traz lirismo ao horror.
Chung diz que sua obra não busca trazer soluções, e sim criticar o estado da humanidade. Uma angústia que, segunda ela, é partilhada por outros que vivem na mesma região do mundo que ela.
“A sociedade em que vivo é altamente competitiva e avança em uma velocidade esmagadora. É quase como se o país inteiro tivesse uma certa paranoia ou medo profundo de que se não competirmos ou nos mexermos, se relaxarmos e cuidarmos uns dos outros por um segundo, tudo vai desmoronar e a Coreia do Norte nos invadirá.”
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Fonte: Uol