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“A Boca não é mais a mesma”, diz um homem, espiando o interior do bar Soberano na rua do Triunfo, no centro de São Paulo. A cena não é de hoje. Já em 1987, o cineasta Ozualdo Candeias mostrava, em “As Bellas da Billings”, a si mesmo e a outros parceiros de geração como fantasmas pelas mesas de um restaurante tão decadente quanto o metiê do cinema na região.
Já se vão décadas, mas Clery Cunha põe a mão no peito ao reconhecer o point da sua gente, no número 155. “Para resolver qualquer produção de filme, era só aparecer aqui”, afirma o diretor de um dos primeiros filmes espíritas do país, “Joelma 23º Andar”, em que uma jovem Beth Goulart vivia uma vítima do incêndio no edifício Joelma.
Ressuscitado por iniciativa do casal Marcelo Colaiácovo e Renata Forato, ambos de 41 anos, o novo Soberano abre nesta sexta-feira (15) trocando os pê-efes e o álcool barato para se tornar um museu do cinema da Boca do Lixo, como ficou conhecida a região.
“Não acho romântico, quem dava esse nome era o pessoal da Warner, da Paramount, para nos depreciar”, diz, revoltado, Virgílio Roveda, o Gaúcho, apontando para a rua onde fez sua carreira como diretor de fotografia de Mazzaropi, Rogério Sganzerla, além de ser braço direito de Candeias, cronista daquela rua onde se concentravam produtoras, distribuidoras e casas para aluguel de equipamentos.
Aos 78, Roveda tenta despistar, mas é um dos mais apaixonados remanescentes da região que produziu centenas de obras, do terror à comédia, passando pelas célebres pornochanchadas até filmes de sexo explícito. Com a memória prodigiosa, ele identifica todos que aparecem nas fotos de “Uma Rua Chamada Triumpho”, livro recheado de registros dos anos 1960 e 1970, onde não raro o Soberano era protagonista.
“Um tinha uma câmera parada, outro um resto de negativo ou um crédito no laboratório. E o filme nascia dessa cooperativa informal”, diz Roveda. Agora, ele devolve parte dessas memórias, doando a câmera Cine 60, com chassi e tripé, que guardava em casa e agora decora o espaço ao lado de projetores e uma antiga cafeteira Monarcha.
No lugar do balcão de sete metros, onde os frequentadores apoiavam suas cervejas —e rabos de galo, um atrás do outro, como lembra Cunha—, o novo espaço traz um de vidro, pintado qual uma carroceria de caminhão, expondo livros sobre o cinema da época que formarão uma biblioteca.
“Aprendi a comer sardinha frita com o Anselmo Duarte nesse balcão”, diz a montadora Dalete Cunha, vulgo Baixinha, lembrando o dono da única Palma de Ouro do Brasil, ganhada em 1962 por “O Pagador de Promessas”.
Pelas paredes, cartazes: “Amor, Palavra Prostituta”, “A Super Fêmea”, “Histórias que Nossas Babás Não Contavam” e “O Jeca Macumbeiro” são alguns dos títulos pelas paredes de tijolos brancos, parte do acervo com mais de 600 itens originais.
O salão destaca ainda exposições, começando por “Além, Muito Além do Zé do Caixão”, com colagens, fotografias e uma série de materiais inéditos do mestre do terror, José Mojica Marins. A entrada é gratuita.
Colaiácovo e Forato cavam a história a picaretadas. Com as próprias economias, bancam a reforma do local que, há poucos anos, era apenas mais uma das lojas de eletrônicos que dominaram a Santa Ifigênia.
Num canto do salão, acharam o padrão xadrez, branco e vermelho, do restaurante original fundado em 1961 e tocado pelo português Serafim Teixeira até fechar, em 1994. Ao fundo, em um dos arcos que separam o agora espaço expositivo da cozinha, também restam fragmentos de um remoto azulejo floral.
Nos dois pisos superiores, onde havia uma pensão, a ideia é continuar a reforma e ter salas para exibir filmes e realizar oficinas. Para manter o local, os sócios pretendem abrir uma loja e abrir um canal para doações.
O desafio se espelha no entorno —o prédio desvalorizou por estar a duas quadras de um dos principais endereços da cracolândia, na rua dos Protestantes.
“A gente precisa correr riscos para que o público se sinta à vontade e venha para cá. Pagamos segurança 24 horas e sinto que hoje a rua do Triunfo é uma das mais policiadas de São Paulo, a gente se sente seguro”, diz Colaiácovo. O local funcionará a princípio das 10h às 16h, de quarta a sábado.
É uma condição que afeta a região há décadas, mas o relato dos antigos frequentadores é de que havia boa convivência entre a turma de cinema e as prostitutas, proxenetas, traficantes e malandros que batiam ponto por ali.
Cunha, uma das primeiras mulheres a ter o registro profissional de montadora, recorda ainda a intimidade com as prostitutas do pedaço. “Quando eu via alguma viatura, sai avisando uma por uma. Sumiam todas. A gente sabia que se fossem para a delegacia seriam exploradas e abusadas.”
Como se pode imaginar, a pancadaria também estourava. José Rima, o Espanhol, que armava telas e cadeiras dos cinemas, era um exímio valentão daquelas bocas.
Com um escritório colado ao Soberano, no número 153, seus pares lembram das balbúrdias —enfrentou o próprio dono do bar, dizem—, dos acidentes que quase lhe custaram a vida montando os equipamentos e causos envolvendo assombrações.
Hoje, aos 96, ele diz não se lembrar de muita coisa. Entre piscadelas, só fala sobre o que tem certeza. “A juventude se foi. O tempo de antes era melhor. Montei tela e mais tela, isso eu posso dizer.”
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Fonte: Uol