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Em face da recente repercussão nesta Folha de notícias e textos de opinião sobre as cotas raciais, convidei Alessandra Devulsky, professora doutora da Universidade de Québec em Montreal, no Canadá, e autora do livro “Colorismo”, da Coleção Feminismos Plurais/Jandaíra, para escrever um artigo para esta coluna.
No Brasil, ninguém se importa em um processo de seleção se um candidato negro tem pais ou avós brancos. A identificação racial provém do julgamento fenotípico, dos traços evidentes ou vestigiais. De modo geral, pardos integram um grupo racial originado da sobreposição de origens raciais.
Quando genitores pardos ou pretos não legam os traços constitutivos de seu grupo racial a seus filhos, estes podem ser considerados brancos, posto que não serão lidos socialmente como pardos ou pretos.
A razão de ser das ações afirmativas é corrigir uma parcela das desvantagens e distorções socioeconômicas decorrentes do racismo. Por isso, é evidente que alguém que não sofreu as consequências do racismo estrutural em virtude da aparência branca, apesar da parentalidade preta, parda ou indígena, não usufrui da política de cotas raciais.
No que tange ao racismo contra negros, é justamente a negritude identificável pelo interlocutor racista que lhe incomoda, não obstante o sujeito também poder portar certos traços brancos menos preponderantes. Essa concepção tributária da ideologia eugenista, que mal dissimula as ideias de desvio, perversão ou mesmo degradação racial atribuídas à mestiçagem, ainda grassa.
Desse modo, o racismo ancorado na oposição entre o heterodoxo e o ortodoxo, entre o negro e o branco, cria malhas entre esses antípodas para reforçar a distinção entre seus polos. Demarcando os limites de proteção das zonas de privilégio e de exploração, pessoas oriundas do processo de mestiçagem só serão suficientemente negras e, assim, sujeitas ao racismo na medida em que seus traços de africanidade sejam visíveis, ou seja, indeléveis e não escamoteáveis.
Portanto, aquilo que foge da régua da “europeinidade”, ou do que comumente se entendeu por ser branco, resta excluído da normalização de identidades brancas que seguem protegidas de uma assimilação. Acolher pessoas pardas no grupo racial de negros constitui um avanço na luta antirracista graças ao movimento negro.
As identidades negras e indígenas não se confundem, tampouco partilham os mesmos estereótipos raciais que levam à discriminação. Não obstante, os oceanos de distinções e particularidades, o genocídio dos povos indígenas, o tráfico negreiro e a escravidão dos povos negros produziram tecnologias e códigos culturais que permanecem no nosso cotidiano.
Transmitidos de geração em geração, na oralidade, na literatura, nas políticas institucionais e na cultura, na hora de dividir o pão, de eleger o representante, de empregar ou mesmo amar alguém, todo brasileiro sabe quem carrega qual marca desses processos.
As bancas de heteroidentificação em relação às cotas raciais funcionam como a foto no documento de identidade. Elas restam como o modo mais eficiente de avaliação identitária.
Fatores culturais, gostos musicais, engajamentos políticos e crenças religiosas falam da individualidade e do compromisso ético que as pessoas têm com sua origem, seu passado e sua história. Contudo, o racismo, assim como o capitalismo, opera através disso, mas para além dessas dimensões, tensionando os marcadores raciais até que deles surja uma identidade parametrizada, predisposta à catalogação necessária que as torna distinta e passível de classificação.
A racialização é um processo social que independe da vontade do sujeito.
Não foram as bancas que criaram esses fatores, elas tão somente reconhecem essas características para bem desempenhar seu papel de afastar fraudadores. Por isso, não há subjetividades ou processos decisórios individuais a serem avaliados pelas bancas. Elas seguem o parâmetro do tipo de racismo desenvolvido no Brasil que não se pauta na origem, mas sim no fenótipo.
A política de cotas é uma necessidade para 55,5 % da população, dentre os quais mais de 90 milhões de pessoas carregam traços raciais ambivalentes ou limítrofes, mas imanentes quando se trata da disparidade de remuneração, moradia, escolaridade e mortandade em comparação a brancos.
Tendo como horizonte a criação de alianças mais fortes que os elos de opressão que nos unem, é possível aprimorar nossas ferramentas de combate às fraudes, preservando as ações afirmativas.
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Fonte: Uol