[ad_1]
“É a ópera mais triste que eu já regi em toda a minha vida”, diz o maestro Roberto Minczuk, se debulhando em lágrimas, minutos antes de subir ao pódio para ensaiar “Madame Butterfly”.
A obra-prima do compositor italiano Giacomo Puccini, morto há cem anos, estreia na sexta-feira, dia 15, no Theatro Municipal de São Paulo, ressaltando a natureza do libreto de Luigi Illica e Giuseppe Giacosa, uma tragédia sem concessões que conjuga paixão, traição, sangue e suicídio.
Ao século 21, “Madame Butterfly” suscita uma polêmica. No mundo todo, estudiosos se digladiam sobre o tratamento que deve ser dado ao orientalismo de Puccini. Em sua obra, ele teria retratado uma caricatura do Japão, com um olhar estereotipado sobre a mulher japonesa e uma ideia primitivista do continente asiático.
Ao mesmo tempo, suas óperas são as mais conhecidas de todo o repertório. A tragédia de Butterfly é um título incontornável.
“Puccini é uma explosão emocional. Ele estabeleceu a fórmula da Broadway, porque apresentava os personagens com temas palatáveis”, afirma Minczuk, lembrando que Andrew Lloyd Webber, o criador do musical “O Fantasma da Ópera”, foi processado por copiar temas do autor italiano.
“Madame Butterfly” foi apresentada, pela primeira vez, em 1904, no Teatro Alla Scala, em Milão, na Itália. Seu enredo é contemporâneo à escrita da obra.
Pinkerton, tenente da marinha dos Estados Unidos em Nagasaki, papel agora revezado pelos tenores Celso Albelo e Enrique Bravo, compra uma casa numa colina e leva de presente a gueixa Cio-Cio-San, personagem das sopranos Carmen Giannattasio e Eiko Senda, com quem se casa.
Pinkerton, porém, regressa aos Estados Unidos e abandona a gueixa, chamada por ele de Butterfly, que canta “Un Bel dì Vedremo” —um belo dia veremos.
É uma das árias mais famosas da história, em que a soprano, na beira do palco, encara a plateia, como se estivesse diante do mar. Ela acredita no regresso de seu amado e, no último verso, quando admite o esperar, vislumbra o desastre do terceiro ato.
Enquanto isso, Butterfly traz à cena um menino, mostrando ao povoado ter tido um filho com o oficial americano. Um belo dia Pinkerton volta à Nagasaki, mas na companhia de Kate, sua nova mulher.
O tenente fica com remorso ao ver a gueixa ainda o aguardando e grita seu nome por três vezes. Por uma questão de honra, Butterfly crava um punhal no próprio ventre, cometendo “harakiri”, a ritualística forma de suicídio reservada aos samurais.
Aliando o sinfonismo ocidental e a sonoridade japonesa, com as escalas pentatônica, Puccini trabalha, em sua ópera, no contraste entre Ocidente e Oriente, como sugere a própria existência da gueixa. Ela é uma mulher com dois nomes, que se articulam em cena na figura plástica de uma borboleta.
O pano de fundo é a modernização do Japão que vivia a revolução Meiji. Na época, o país deixava o regime do xogunato —o governo liderado por chefes militares, os xoguns— e se abria às economias ocidentais, que também influenciavam sua cultura.
Mas o olhar de Puccini, adepto do verismo, que preconizava a linguagem realista, hoje inflama debates sobre um suposto fascínio das sociedades europeias por um Oriente exótico, o que o crítico literário Edward Said chamou de orientalismo, num livro clássico, de 1978.
Tal pensamento aflorou no século 19, quando as potências do velho continente iniciaram um projeto neocolonialista. Na arte, isso se reflete em estereótipos que valorizam o primitivo.
“Madame Butterfly” é um produto de sua época. As encenações clássicas reproduzem um Japão imaginário, com cerejeiras no palco e casinhas mimosas. Do mesmo modo, cantoras europeias não hesitavam em fazer “yellow face”, imitando os traços físicos das japonesas.
Ademais, o próprio libreto descreve Butterfly como uma “bonequinha” ingênua, o que indica a misoginia e a sexualização da mulher. Com o passar do tempo, novas montagens da obra caíram num limbo, sendo agora um impasse para os encenadores contemporâneos.
Há dois anos, “Madame Butterfly” ganhou uma montagem radical na Ópera do País de Gales. A australiana Lindy Hume ambientou a história fora do Japão, no Ocidente e no século 21. Nenhum cantor usava vestes nipônicas ou imitava as asiáticas na maquiagem.
Livia Sabag, diretora cênica da montagem do Municipal, que estreou em novembro no Teatro Colón, de Buenos Aires, na Argentina, tem uma visão ponderada sobre o assunto. Ela afirma que o orientalismo é de fato um problema e tenta não explorar estereótipos. “Vi fotos do Japão no início do século 20 e só vi pobreza. É uma história muito dura, por isso não uso estampas típicas na ambientação nem o colorido das flores.”
O cenário é árido e monocromático. O bucolismo jocoso, típico das montagens clássicas, dá lugar a uma paisagem de árvores mortas, com um céu plúmbeo. Ao mesmo tempo, estão lá os trajes típicos e a maquiagem característica. Sabag vê a obra de Puccini como uma crítica ao abuso de Butterfly. “A forma como a história é contada deixa explícita a crítica a Pinkerton.”
Com a montagem no Municipal, a soprano japonesa Eiko Senda, que vive entre o Brasil e o Uruguai, vai completar 180 récitas interpretando a gueixa. Descendentes de xoguns, seus familiares foram executados durante a revolução Meiji. E, contrário à maioria, ele acredita que Puccini deu um tratamento realista à caracterização de Butterfly
“É um retrato bastante fiel da mulher japonesa, a caricatura pode ser uma coisa muito elegante”, diz. Inclusive, ela conta ter sofrido, durante a carreira, com os dilemas de “Madame Butterfly”. Com medo de ferir sensibilidades, encenadores europeus só a chamavam para viver a gueixa ou integrar o elenco de “Turandot”, obra de Puccini ambientada na China.
Os debates, de todo modo, não têm data para terminar. Em outros momentos de expansão das potências europeias, títulos seminais da ópera refletiram o fascínio pelo exótico, com libretos caricatos. Lembremos do período barroco, em que Rameau compôs “Les Indes Galantes”, que inclui uma peça intitulada “Os Selvagens”. Ou, então, Handel e sua ópera “Giulio Cesare”, que se passa em Alexandria, em 48 a.C.
Professor de música da Universidade Nova de Lisboa, Alberto Pacheco afirma que os europeus tinham fascínio pelo exótico, pois a encenação de realidades tão distintas refletia as conquistas propiciadas por um imenso poderio econômico e bélico. “Só que a interpretação desse Oriente sempre foi de um ponto de vista eurocêntrico”, ele afirma.
Em paralelo, as casas de ópera eram um espaço de mediação, em que, num exercício de alteridade, a própria sociedade europeia reconhecia a sua identidade. “Estamos diante de um problema seríssimo, porque é complicado negar um repertório de inegável valor artístico”, diz Pacheco. “Mexer na encenação da ópera é sempre uma opção, mas, se você alterar muito, nem encontramos mais a obra do compositor.”
[ad_2]
Fonte: Uol