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O bacon é fatiado e jogado dentro da panela. Depois, uma dose de cachaça é adicionada à receita. Os ingredientes são misturados com o auxílio de uma colher de pau e, dali a alguns instantes, a feijoada está pronta. O cheiro se espalha pelo ambiente, fazendo o estômago roncar e a boca se encher de água.
Mas não estamos na cozinha de um restaurante. É a peça “O Fim é uma Outra Coisa”, espetáculo que faz do ato de cozinhar uma dança e da comida uma obra de arte. Em cartaz no Sesc Avenida Paulista, o espetáculo desafia a ideia de que culinária é uma ação banal e evidencia a força poética dessa atividade.
“Queremos entender o aspecto artístico de acontecimentos que não ocupam formalmente o lugar de arte”, diz Grace Passô, diretora da peça e uma das atrizes mais respeitadas do país. Ela foi vencedora do prêmio de melhor atriz no Festival de Cinema do Rio pelo filme “Praça Paris” e no Festival de Brasília pelo longa “Temporada”.
“A ideia é compreender a dimensão artística da nossa vida e do nosso dia a dia”, diz ela. Por essa razão, o preparo de refeições se assemelha a uma coreografia de movimentos ágeis e bem calculados. O som também desempenha papel importante.
Ao fundo, o público ouve o tilintar de talheres, o ressoar de pilões e o borbulhar da água fervendo. A esses sons soma-se o batuque de panelas. É como se o público estivesse diante de uma orquestra improvisada. “É uma espécie de instalação sonora”, diz Gabriel Cândido, dramaturgo que assina a direção com Passô.
“A gente tem um trabalho que busca ser sensorial, em que tiramos centralidade da palavra para trabalhar o acontecimento cênico”, diz ele, acrescentando que estimular os sentidos é uma forma de dar protagonismo ao espectador. “Imagem, som e cheiro tiram o público de um lugar contemplativo.”
Ele diz que a peça também é uma forma de criar novos imaginários sobre a cozinha. “Durante muito tempo, ela era vista como um lugar oculto que as pessoas não queriam ver.”
Isso aconteceu, ele diz, por influência da escravidão, quando mulheres escravizadas eram obrigadas a cozinhar para a classe senhorial. Por isso, a atividade foi associada a um trabalho doméstico de natureza servil, visão que a peça tenta subverter.
“O espetáculo expressa a cozinha não como um espaço de serviço, mas como um ambiente alquímico e laboratorial para a construção de arte e da experimentação.”
O artista quis construir ao lado de Passô uma produção que rompesse com a ideia de que negros na cozinha são uma reminiscência do racismo e da escravidão. “Estamos falando de tecnologia, de saberes pretos e indígenas. Para a gente, tem mais a ver com intelectualidade do que com sofrimento.”
A culinária brasileira de fato tem raízes afro e indígenas. Os povos originários nos legaram comidas como bolo de fubá, paçoca, tapioca, açaí e chimarrão. Já pratos como o acarajé, bobó e moqueca são herança das populações africanas trazidas à força para o Brasil durante a escravidão.
Passô acrescenta que falar sobre comida no Brasil não é algo trivial, uma vez que a culinária revela muito sobre as dinâmicas sociais do país. “Não tem como falar de alimento sem falar de cozinha, serviço e de uma lógica escravocrata”, diz. “Mas também não tem como falar de comida sem lembrar da resistência e do brilhantismo negro em relação à criação culinária.”
Embora não seja uma biografia, o texto do espetáculo inclui passagens da vida de Zora Santos, atriz que nasceu em uma família de cozinheiras e protagoniza a obra, mas custou a aceitar a culinária como parte de seu trabalho.
Isso mudou durante uma viagem, quando percebeu que cozinheiras desfrutavam de prestígio no exterior. “Daí resolvi me profissionalizar com a comida da minha família, que eu chamo de comida afro-mineira”, diz ela, referindo-se a alimentos como pastel de angu.
Com três décadas de carreira, Zora atuou em filmes como “Chico Rei”, de 1985, “Os Inconfidentes”, de 1972, e “Levante”, lançado no ano passado. Em paralelo à carreira de atriz, ela realiza pesquisas sobre culinária afro-mineira e dá palestras sobre o tema. “Na peça, a gente enxerga a comida de forma mais ampla. Ela alimenta o corpo, mas também nutre a alma.”
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Fonte: Uol