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Em hipótese alguma deve-se dar munição ao inimigo. Embora a metáfora remeta a um contexto de guerra, ninguém envolvido em um conflito armado precisa desse conselho, que em geral se dá para pessoas em outras situações competitivas, alertando-as de que o menor descuido pode ser usado pelo oponente.
Certifique-se de não facilitar o trabalho do inimigo ao fornecer argumentos, falas e exemplos que possam ser usados contra você.
O aviso “não dê munição ao inimigo” está hoje em toda parte, refletindo a ideia geral de que vivemos uma guerra permanente e que o nosso lado não pode expor as próprias fragilidades se não quiser que o inimigo as use para nos atacar. Se você pensa que isso acontece na política, está muito enganado. Fãs de Beyoncé vivem conflitos internos neste momento porque há “beyfãs” falando mal do filme “Renaissance”.
Dado um cenário de conflito aberto com os outros “fandoms”, “uma coisa é não gostar, até pq ngm sempre gosta de tudo, outra é fazer um tweet dando munição pra hater falar mal da Bey”. As “fanbases” dos participantes do BBB vivenciam constantemente essa mesma tensão. A patrulha de críticas e repreensões publicadas tem o mesmo propósito: constranger os fãs que não percebem que expor os defeitos de seus ídolos os deixa vulneráveis aos seus inimigos.
Se, por outro lado, você pensa que em política só a esquerda passa por isso, engana-se de novo. Está circulando um engraçado argumento-meme de reação às pressões para a autocensura das posições extremistas, que diz mais ou menos isso: “Sê feminista para não dar munição para a esquerda te chamar de machista; sê desarmamentista para a esquerda não te acusar de violento; sê a favor da ideologia de gênero para a esquerda não te acusar de alguma fobia; em suma, sê de esquerda para a esquerda não te acusar de ser de direita”.
Na esquerda, isso virou um cala-boca de uso disseminado. Gregorio Duvivier e Felipe Neto presumiram que a sua folha corrida de engajamento e compromisso com a causa lhes conferia o direito de criticar uma decisão de Lula na escolha de ministros do STF. Qual o quê!
Uma das respostas a uma crítica do último é para emoldurar: “Escreve no seu diário então, aqui você só vai dar munição para a direita. Ou então se filia no partido e fala nos espaços de discussão. Para tudo tem lugar certo”. Em resumo, guarde suas críticas para você, o espaço público está reservado para a concordância.
Esta é claramente uma forma de evitar a autocrítica pública, o reconhecimento de estratégias equivocadas e a admissão de erros. Por essa estrada se chega facilmente ao veto interno tanto à admissão de culpa quanto à mortificação por erros cometidos e à adoção de ações corretivas.
Externamente, os críticos são acusados de conluio com o inimigo, responsabilizados pela eventual derrota do bem e ameaçados com a sombria perspectiva da vitória do mal.
A atividade de crítica política, em suma, não é reconhecida por quem está envolvido numa causa. Não se tem a menor disposição a reconhecer a existência de posições independentes, pois, para o militante, todo mundo é um ativista, assumindo-o ou não.
Antes, noções como verdade, objetividade, imparcialidade são descartadas como um engodo ou um autoengano. Não existem fatos, só interpretações; não há verdade, apenas opinião; não há independência intelectual, todo mundo se move apenas por alguns dos interesses que dividem a sociedade. Quem reivindica ciência está apenas camuflando a sua parcialidade, quem diz que não adere a partidos já aderiu ao outro lado.
Em um mundo fraturado entre nós e o mal —seja definido como fascistas pelos progressistas, comunistas pela extrema direita ou portadores de alguma fobia pelos identitários—, criticar-nos é aderir ao mal.
Nessa perspectiva, intelectuais e críticos são apenas militantes com mais leitura e melhor vocabulário, se muito. Quanto à crítica política, ela só é considerada uma análise válida e baseada em argumentos e evidências quando se alinha com os nossos interesses; do contrário é apenas artilharia inimiga dedicada à nossa destruição ou colaboracionismo mal disfarçado fornecendo armas aos nossos inimigos.
A análise política, ao que parece, é um privilégio reservado a sociedades que aspiram construir um projeto comum, que depositam confiança em argumentos e entendimento entre as partes e que mantêm a crença de que falhas podem ser corrigidas e perspectivas podem ser aprimoradas. A inviabilidade da crítica política é sempre um péssimo sintoma.
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Fonte: Uol