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Amaro Freitas passeava de barco pelo Amazonas quando, impressionado com o encontro do rio Negro com o rio Solimões, decidiu que queria mergulhar ali. O barqueiro não deixou. “Um peixe grande pode pegar teu pé, te arrastar e nunca mais te achamos”, disse. “Vou te levar para um lugar onde dá.”
Já numa região mais tranquila do rio Negro, quando pulou na água, Freitas se deu conta de que não conseguiria alcançar a beira do barco para se segurar. “Eu não sei nadar, bicho”, diz o pianista.
“Comecei a gritar desesperadamente por socorro. O barqueiro me chamou de louco e jogou uma corda. Depois, me levou para perto da margem. Quando me segurei num tronco para tentar sair, o Helder Tavares, fotógrafo que estava no barco, disse: ‘Fica aí porque o sol está batendo de uma forma muito bonita no seu rosto.’”
A imagem é a que se vê na capa de “Y’Y”, novo disco do músico pernambucano, um dos instrumentistas brasileiros mais celebrados no mundo hoje.
São Paulo poderá vê-lo em ação nesta semana no Sesc 14 Bis e no Sesc Jundiaí, ao lado do também pianista Zé Manoel e com participação de Alaíde Costa, num show especial com músicas do Clube da Esquina. Já as apresentações do novo disco ficarão para abril, no Sesc Pompeia.
A foto da capa aponta metaforicamente para uma série de sentidos de “Y’Y” —a pronúncia é “iêiê”. O disco nasce do encontro de Freitas com a cultura amazônica, indígena, em particular com a comunidade Sateré Mawé, com a qual conviveu por alguns dias e estabeleceu laços.
A diáspora negra também é uma dimensão fundamental do álbum, desde o íntimo da música do pianista ao seu diálogo com instrumentistas convidados como o inglês Shabaka Hutchings e o cubano Aniel Someillan.
O rosto de Freitas, submerso num rio amazônico batizado como Negro —com os cabelos, em suas próprias palavras, “como se fossem raízes”—, traduz o que se ouve no álbum. E o mergulho ousado reflete a surpresa das experiências do músico com o piano preparado, central para a sonoridade que constrói.
“O piano preparado é uma técnica desenvolvida por John Cage, de botar objetos dentro do instrumento para alterar o som”, diz o artista. “Mas Cage usava parafuso, um material metálico. Eu comecei a testar pregador de varal, sementes amazônicas, peça de dominó, fitas.”
O pernambucano, porém, evitou soar puramente experimental. “Eu gosto de melodia, harmonia. E o Brasil tem muito ritmo. Só Pernambuco tem ciranda, coco, cavalo-marinho, maracatu, frevo, baião, caboclinho. Queria esse calor tropical, essa umidade”.
Naná Vasconcelos e seu disco “Amazonas” foram referência fundamental para “Y’Y”. “Eu queria transformar as cordas do piano, em determinado momento, no berimbau de Naná”, afirma Freitas. Uma das músicas do disco, “Viva Naná”, é dedicada ao percussionista.
“Comecei a sonhar com Naná durante um período. É a primeira vez que boto minha voz num disco. E a forma como faço isso em ‘Viva Naná’ foi ele mesmo, em sonho, que me disse como fazer”, diz. Não à toa, o sonho é, para as culturas indígenas, um espaço de vivência, aprendizado com quem está distante.
Depois de “Sangue Negro” (2016), “Rasif” (2018) e “Sankofa” (2021), “Y’Y” se inscreve numa tradição brasileira de abordar o chão ancestral de nossa música a partir da perspectiva ocidental das vanguarda.
“Além de Naná, a própria obra do Villa-Lobos traz isso, com Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal. Acho que sou uma continuidade desse fluxo sonoro brasileiro”.
Ao longo das faixas de “Y’Y”, transbordam exemplos disso que Amaro fala. Sua mão tocando diretamente nas cordas do piano em “Uiara” para emular o canto dos botos. Os tambores que brotam do piano preparado com pregadores em “Dança dos Martelos”. A melodia de “Asa Branca” que se cruza com o timbre africano da m’bira em “Sonho Ancestral”.
Amaro faz questão, porém, de marcar sua posição como um músico contemporâneo. “Várias informações nos atravessam. Eu gosto de música pop, ouço Michael Jackson, Ludmilla, Pabllo Vittar”, diz o pianista. “É lindo o ancestral, mas a vida é uma continuidade. Busquei sonoridades eletrônicas no disco também, mas a partir do orgânico. Em ‘Uiara’, por exemplo, as fitas dentro do piano fazem ele soar como um sintetizador, assim como em “Y’Y”, na qual uso peças de dominó”.
É mirando no calor do hoje que Amaro traz para o disco os instrumentistas convidados Shabaka Hutchings, Brandee Younger, Aniel Someillan, Jeff Parker e Hamid Drake —nomes de destaque no cenário mundial do jazz.
“É muito importante para mim estar tocando com nomes que são alguns dos principais músicos contemporâneos”, diz Amaro. “Mas principalmente por isso se dar pelo protagonismo de um brasileiro. O encontro de Milton Nascimento com Wayne Shorter em “Native Dancer” é uma parada incrível. Mas me incomoda ver o nome de Shorter gigante e o de Milton pequeno, sabe?”
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Fonte: Uol