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“Você não furou a orelha dela?”
Me perguntou um amigo, ao ver a minha filha, então com um ano de idade, pela primeira vez.
Eu já havia ouvido a tal pergunta antes. Aliás, já haviam nos feito o mesmo questionamento tantas vezes que elaboramos uma resposta padrão diplomática o suficiente para não deixar ninguém ofendido, mas taxativa o suficiente para —geralmente— encerrar o assunto. Desandei então a enunciá-la com um sorriso igualmente diplomático estampado no rosto:
“A gente conversou sobre essa possibilidade e, por mais que eu ache lindo em mim, decidimos esperar para que ela própria tome essa decisão quando estiver maior.”
Eu estava prestes a puxar outro assunto, quando meu interlocutor prosseguiu:
“E você não costuma colocar nenhum lacinho nem nada na cabeça dela?”
“Não… Ela não gosta de nada prendendo o cabelo.”
Ele não se intimidou e prosseguiu, finalmente concluindo seu raciocínio:
“Mas como vão saber que é uma menina?”
Confesso que a pergunta me pegou de surpresa. Nunca tinha parado para pensar nisso.
Olhei para Stella, brincando em cima da mesa entre nós dois, seus cabelinhos de bebê ainda curtos, seu corpo trajando apenas uma fralda de pano nem rosa, nem azul. Podia ser apenas um retrato do momento, um registro de um daqueles dias de verão em que roupas não são bem-vindas. Mas era o reflexo fiel da maior parte de seus dias. Como bem apontado por meu amigo, Stella não usa brincos nas orelhas nem laços no cabelo. Em seu pequeno armário, poucas são as pistas sobre seu gênero. O rosa está longe de ser a cor dominante, vestidos são raros.
Naquela fração de segundo em que a pergunta ficou sem resposta, refleti sobre tudo o que havia nos levado até ali. Afinal, nenhuma escolha se dá ao acaso. Lembrei do dia em que recebemos a notícia de que Stella seria uma menina e eu chorei de alegria e preocupação em igual medida. Lembrei de como, à medida que ela se desenvolvia, percebemos que os vestidos atrapalhavam seus movimentos, prendendo sua perna ao engatinhar, impedindo-a de subir com destreza os degraus do brinquedo no parquinho enquanto os meninos trajando calças subiam sem dificuldade. Lembrei de como sempre que ela vestia uma roupa mais feminina, os elogios se acentuavam, mas também se adequavam ao gênero: “Que linda!”, “Que princesa!”, “Que mocinha!”, reforçando essa ideia preconcebida do que é feminilidade.
Concluído o flashback, respondi com uma nova pergunta: “Por que sentimos tanta necessidade de distinguir meninas e meninos ainda bebês?”
Ele sorriu nervosamente e, incapaz de me oferecer qualquer resposta, finalmente mudou de assunto. Eu, por outro lado, segui tentando responder ao meu próprio questionamento e cheguei à conclusão de que, numa sociedade machista, saber logo de cara quem é quem é essencial. Só assim, essa mesma sociedade conseguirá moldar esses mini seres humanos para que se encaixem naquilo que se espera deles. E para a mulher essa construção se dá também na sutileza do dia a dia, naquelas barreiras que a gente se acostumou a achar inofensivas. No laço que não pode sair do lugar, no vestido cheio de camadas que atrapalha o caminhar. E também no tipo de elogios que a feminilidade atrai, que reforçam uma importância desmedida da beleza, da delicadeza, da graça, da fragilidade.
Mas eu quero que minha filha seja forte e corajosa, que tenha sensibilidade e empatia sim, mas também voz própria e pensamento crítico. E que entenda que seu valor vai muito, muito, muito além de sua beleza física.
Por essas e tantas outras, não me incomoda que um estranho na rua pense que minha filha é um menino. Minha prioridade não é sinalizar seu gênero, até porque, assim como o furo na orelha, quem irá um dia decidir sobre isso será ela. O meu papel se resume a ajudar a construir dentro dela uma autoconfiança apenas possível por meio da plena e verdadeira liberdade de fazer tudo o que um menino é capaz de fazer. E se por isso a confundirem com um deles, não faz mal. Deixa que confundam.
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Fonte: Uol