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“Agora todos se foram, e não há nada mais que o mar possa me fazer”. A frase da matriarca Maurya (personagem interpretada por Lidia Schäffer, em grande atuação vocal e cênica) resume a tragédia “Homens ao Mar”, ópera do compositor inglês Ralph Vaughan Williams (1872-1958), em cartaz no Theatro São Pedro até este domingo (10).
No mar de Vaughan Williams, traduzido com perfeição e obstinação pela sonoridade tétrica da orquestra, não há espaço para a aventura, para o “peixe bom”, para a festa no retorno à costa. Após presenciar em vida a perda de seis homens para o oceano, Maurya celebra uma estranha liberdade: unidos pela morte, os filhos enfim estão todos juntos, independente de repousarem “no fundo das águas” ou merecerem um “belo caixão de tábuas brancas”.
Sua escrita direta (a ópera dura tão só 40 minutos) alterna a aura gélida marinha com o acalentador lamento da mãe e suas duas filhas mulheres, Nora (a soprano Raquel Paulin) e Cathleen (a soprano Elisa Braga). Uma única voz masculina surge, em breve aparição, a de Bartley (o barítono Rafael Siano), o último filho a perecer. Em impressionante e derradeiro efeito, Williams amplifica a potência destrutiva e invisível do mar com coro feminino: “Homens ao Mar” é ocupada por vozes de mulheres e suas dores.
O texto utilizado pelo compositor seguiu quase literalmente a peça “Riders to the Sea”, do irlandês J. M. Synge (1871-1909). A ópera estreou em 1937 e antecede, portanto, a mais celebrada “Peter Grimes” (1945), de Benjamin Britten, também ambientada numa aldeia de pescadores.
A escolha da ópera de Vaughan Williams é pertinente e precisa, e combina perfeitamente com a proposta curatorial adotada pelo Theatro São Pedro nos últimos anos, a saber, a de se dedicar ao barroco, classicismo (o que tem enfrentado problemas na escolha dos elencos, sobretudo das personagens solistas) e, com mais sucesso, a títulos menos badalados (e de sabor camerístico) do século 20, como no caso de “Homens ao Mar”. Infelizmente, entretanto, a temporada completa 2024 da casa ainda não foi oficialmente anunciada.
A requintada regência musical de Cláudio Cruz harmoniza-se com a concepção cenográfica de Caetano Vilela –com a iluminação esmerada de sempre–, e com destaque para uma grande onda estilizada, que parece ameaçar engolir o pequeno casebre onde se passa toda a história.
Já a ideia de abrir o programa com a “Fantasia sobre um Tema de Thomas Tallis”, obra instrumental do próprio Vaughan Williams, merece algumas reflexões.
Antes de tudo porque tem sido uma tônica das produções operísticas nacionais o uso de recursos cênico-visuais durante as aberturas instrumentais das óperas. Parece até que grande parte das direções cênicas se sentem mesmo compelidas a criar ações durante os às vezes poucos minutos em que a música falaria por si, antes do teatro começar.
A função da “Fantasia” sobre um tema musical de inglês renascentista Thomas Tallis (1505-85) é a de, por um lado, apresentar ao público mais uma bela obra de Vaughan Williams (a “Fantasia” estreou 27 anos antes da ópera) e, por outro, completar o tempo do programa, que inteiro ocupa uma hora.
Mas a proposta cria um dilema: a tentativa de criar cena para a música e conectá-la com a ópera que virá a seguir, embora engenhosa, apenas transforma em fundo musical secundário o meticuloso trabalho de Cláudio Cruz com a Orquestra de Theatro São Pedro –dividida em dois grupos e tendo também um quarteto de cordas em destaque.
Fundo musical para atores que, reunidos à mesa da casa onde irá se passar a tragédia “Homens ao Mar”, sugerem convencionalmente tempos –alheios ao libreto– em que o mar ainda não houvesse tragado os seus homens.
No Instituto de Inhotim, em Brumadinho (MG), há uma instalação sonora baseada em uma obra do mesmo Thomas Tallis. “Forty part Motet”, da canadense Janet Cardiff, simplesmente dispõe 40 alto-falantes, divididos em oito grupos de cinco (representando oito coros com cinco vozes diferentes cada um), num espaço despojado, o que permite ao espectador magnificar os sentidos da experiência sonora. A música pode ser, às vezes, o seu próprio teatro.
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Fonte: Uol