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O menino passou a vida inteira se achando e sendo achado pardo. Disseram-lhe que neste país democrático —que garantiu aos seus cidadãos que todos seriam iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza— apenas a ele caberia decidir com que raça ou cor se identificaria.
Antes, a instrução do manual do IBGE, que vem sendo usado com o mesmo valor vinculante de um artigo da Constituição quando se trata de questões raciais no Brasil (esquisitice republicana nº 1), diz que pardo é justamente “a mistura de duas ou mais opções de cor ou raça, incluindo branca, preta, parda e indígena”.
Como o menino sabe quem são seus pais e avós, pareceu-lhe que a mistura genética de onde provinha o colocava na mesma classe de cor da maioria dos brasileiros e de exatamente 1/3 dos paulistas —e nisso acreditou até que um tribunal racial (esquisitice republicana n° 2) da USP lhe disse não. Ato seguinte, cancelou a sua identidade de pardo e, por exclusão, o reclassificou como branco.
Sim, é isso mesmo. Um tribunal racial, funcionando legalmente na melhor universidade do país, declarou para todos os efeitos que o menino que passou a vida se achando pardo estava só se fingindo de pardo para fraudar privilégios distribuídos por uma política pública para… pardos. Ou PPIs (pretos, pardos e indígenas), na infame terminologia adotada.
Contemplem o estranho caso de alguém que entrou pardo numa sessão do tribunal racial da USP e de lá saiu branco. Passou a vida comendo o pão que o diabo amassa para pobres e pardos neste país, até que resolveu reivindicar o direito a uma cota racial, projetada, segundo dizem, para pessoas como ele. Foi então informado de que era branco e mandado de volta para casa com as mãos abanando e uma acusação de fraudador.
Só nessa Folha já se falou de dois casos nesta semana. No Brasil, há de haver centenas deles desde que se formou o estranho consenso de que, como ouvi nesta semana no vídeo da aula da “Oficina de Letramento de Heteroidentificação” da USP, “o fenótipo é o critério único e exclusivo” a ser usado por bancas de “heteroidentificação” (esquisitice republicana n° 3). E que diabos é fenótipo?
Se você tivesse feito o “letramento” saberia que se resume ao conjunto: “cor da pele, traços faciais (principalmente o nariz e a boca) e textura do cabelo”. Isso mesmo, nos templos da cientificidade, a decisão sobre quem pode ter acesso a compensações devidas a descendentes de africanos e indígenas é baseada em “dar uma olhada” na cara das pessoas.
Claro, “dar uma olhada” parece pouco científico, mas se você o chamar de “análise fenotípica”, o popular “olhômetro” ganha ares de biologia profunda e objetiva.
O parecer dos magistrados raciais disse a outro pardo que saísse da fila dos que têm direito à cota porque “tem pele clara, boca e lábios afilados, cabelos lisos”. Ora, vejam só. Ser pardo é ser resultado de uma mistura, mas, para o tribunal, ou ele tem traços de negro ou não é pardo. Se puxar a mamãe, branca, mas não sair ao papai, que não é, está condenado a ser nada, visto que não é preto o suficiente para ser pardo. Entendeu? Nem eu.
O pior é que a norma em vigor nem sequer diz que para ser pardo é preciso ter pretos na sua ascendência, é bastante misturar um branco com alguém que não seja amarelo (sic). Pardos com brancos fazem pardos. Indígenas com brancos fazem pardos. Os descendentes de Ceci e Peri são pardinhos, mas não passariam pelos tribunais raciais da USP. Pois é, também acho que essas leis raciais deveriam ao menos ser coerentes, já que republicanas não podem ser.
Diante do meu espanto ante a complacência com que pessoas que se acreditam progressistas e igualitaristas aceitam a existência de tribunais raciais, alguém me ofereceu explicação apaziguadora. “Gente, pelo amor de Deus, esse menino não sofre racismo”. Ué! Primeiramente, a cota da USP não é para “quem sofre racismo”, é uma cota para PPIs.
O que deveria estar em questão é se os que foram tirados da fila das compensações históricas pela polícia racial eram ou não pardos. Pelo que se depreende dos juízos emitidos, ninguém pediu um histórico de racismo, apenas olharam umas fotos e fizeram uma chamada de vídeo.
Além disso, os magistrados das cortes raciais são dotados de tal onisciência que podem decidir aprioristicamente se alguém já sofreu ou não racismo? Pois, se o critério for esse, sugiro que os pardos encham os bolsos de boletins de ocorrência de casos de racismo como forma de prova cartorial de sofrimento. Q
Quem sabe assim não consigam ser respeitados?
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Fonte: Uol