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O som entoado pelas mulheres do movimento Riot Grrrl poderia ser o de qualquer banda punk. As músicas têm poucos acordes, usam expressões agressivas com referências diretas à cultura americana — “George Bush é um porco”; “Foda-se Twin Peaks”— e começam com palavras captadas ao longe ou faladas com rispidez —”1, 2, 3, 4”, “era pra isso estar fazendo esse som?”— antes de surgirem vocais gritados.
A diferença é que quem toca, canta, compõe e ocupa os palcos e a plateia são mulheres, e as músicas são carregadas de mensagens feministas contra a violência doméstica, o assédio sexual e a exclusão feminina.
No 2024 que já vivenciou a ascensão e queda de grupos de rock liderados por mulheres —o Hole de Courtney Love, o Sonic Youth de Kim Gordon, o Breeders de Kim Deal— isso pode não parecer nada demais. Mas, em 1991, quando o movimento começou, a cena punk era predominantemente masculina e o espaço para bandas de garotas na música alternativa era mínimo.
Naquele ano, Kathleen Hanna, Tobi Vail e Kathi Wilcox, todas universitárias na cidade de Olympia, no estado americano de Washington, se juntaram no Bikini Kill, uma banda punk feminista e feminina —com exceção do guitarrista Billy— e gravaram uma série de canções irônicas e críticas do patriarcado remasterizadas e lançadas em 2015 sob o título “Revolution Girl Style Now”. “Eu não tenho desejos, eu não sinto nada, eu só quero fazê-lo feliz, a garotinha do papai não quer mais ser a vadia dele”, diz uma das letras.
A banda, que retomou suas atividades em 2019 depois de 22 anos separada, vem ao Brasil para dois shows em São Paulo, nos dias 5 e 14 de março. A segunda data foi anunciada depois da alta demanda por ingressos da primeira apresentação.
“Hoje vemos muitas idades, expressões de gênero e etnias na plateia, a audiência está realmente conosco. É uma onda de alegria, não é nem solidariedade, por saber que podemos discordar em muitas questões, mas estamos celebrando que muita coisa melhorou e que vamos continuar lutando para que mais coisas melhorem”, diz Kathleen Hanna.
O vocabulário político não é usado à toa. As riot grrrls funcionam mesmo como uma espécie de grupo de apoio feminista. Segundo a pesquisadora Sara Marcus, autora de “Garotas à Frente”, uma história do movimento Riot Grrrl publicada no Brasil pelo selo musical Powerline, “as bandas eram importantes, mas não eram tudo”.
Junto das músicas e apresentações do Bikini Kill, as integrantes produziam e vendiam zines —um tipo de publicação independente de baixo custo— de conscientização feminista. Títulos como Chainsaw, Jigsaw, Sister Nobody e Riot Grrrl e Bikini Kill, que nomearam também publicações. Esses livretos circularam pelos Estados Unidos inteiros e cruzaram o Atlântico até a Inglaterra, onde outras células —ou capítulos— do movimento nasceram.
Segundo Marcus, essas zines foram elementos chave para a disseminação da mensagem das riot grrrls —que chegou até no Brasil, com as Dominatrix—, assim como reuniões periódicas, a criação de uma rede de jovens feministas e, claro, a música punk.
“Não estávamos reinventando a linguagem da música, mas queríamos fazer algo diferente no sentido de reorganizar a sala para priorizar mulheres”, diz Hanna. Além de serem mulheres subindo no palco, as riot grrrls encorajavam as mulheres da plateia a irem para a frente do palco, um lugar que, principalmente no rock, pode ser ameaçador por suas rodinhas de bate-cabeça.
Ações tão simples, e nichadas em uma subcultura tão específica, encerravam muito da lógica machista que permeia a sociedade toda. Hanna conta que, na época, havia uma pressão gigante para que as mulheres se “trancafiassem e ensaiassem até a morte antes de subir ao palco”. “Se você subisse num palco e não afinasse sua guitarra rapidinho ou se não tocasse como o Eric Clapton, você ia ser tratada como se não soubesse o que está fazendo”, diz ela.
Mas, no contexto faça-você-mesmo do punk que abraçou os Sex Pistols que mal sabiam tocar seus instrumentos, tudo isso parecia fora de lugar para Hanna. “E mesmo essas mulheres que ensaiaram muito e fizeram shows preparadas eram maltratadas”, diz. “Éramos punks, por que tínhamos que saber tocar nossos instrumentos? Por que quando mulheres não sabem é um erro e quando homens não sabem é inovação?”
O clima crítico vinha não só dos pares, mas da mídia tradicional. Marcus diz que os veículos jornalísticos americanos se interessaram pelo movimento, mas nem todos escreviam sobre ele de forma respeitosa — caso de uma reportagem do USA Today sobre o encontro de verão das riot grrrls em 1992, vista como jocosa.
A cobertura do movimento ficou intensa e os pedidos de entrevistas chegaram a um ponto que o assunto ocupava muito tempo das reuniões e as bandas decidiram parar de falar com a mídia, conta Marcus.
“É difícil ter 20 e poucos anos e ver homens adultos escrevendo sobre como você é burra e feia e sobre como você deve ser feminista porque algum homem te magoou e você precisa transar”, diz Hanna. “Tive a sorte de perceber que nada disso acontecia comigo em um nível individual, era parte de uma forma de silenciar e oprimir. Me fez lembrar que o que eu fazia ao subir num palco é importante.”
Ela diz que testemunhou casos de plena sabotagem, tanto da plateia —com homens mandando as mulheres que se apresentavam calarem a boca ou as xingando—, quanto de equipes que deveriam estar trabalhando com as bandas. “Já vi técnicos de som ameaçaram abaixar o volume do microfone para as vocalistas serem obrigadas a cantar mais alto e acabassem perdendo a voz para shows seguintes”, conta.
Agora, o cenário melhorou —ao menos um pouco. “Agora, quando subimos ao palco, não lidamos com tantas pessoas nos interrompendo. Ainda acontece, mas respondo o que sempre respondi: sou a pessoa com o microfone, é o meu show, então cale a porra da sua boca.”
Embora a banda vá se apresentar no Brasil depois de suas idas e vindas, o movimento organizado Riot Grrrl da maneira como nasceu se dissipou ainda nos anos 1990. Segundo Marcus, ele viveu um fim gradual, sem uma implosão. “Foi um movimento que serviu um propósito específico, em um período específico, de dar uma educação política e uma plataforma cultural.”
Mas as riot grrrls deixam seus rastros. Hanna os vê na forma divertida como algumas bandas compõem e se portam, principalmente novos grupos punks ingleses como Lambrini Girls e Problem Patterns —duas bandas com músicas dedicadas, por exemplo, a desafiar feministas que excluem transexuais. Essa toada leve e brincalhona é algo que ela mesma tentou trazer no grupo Le Tigre, que sucedeu o Bikini Kill.
Marcus vê as marcas das Riot Grrrls em traços além da música. “Hoje, quando as pessoas trabalham para tirar espaço dos músicos que têm históricos de assédio, vejo um eco desse movimento”, diz.
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Fonte: Uol