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Diz a história que a menina Iemanjá estava triste. Então Olodumaré, o criador, resolveu entregar um presente para a princesa. Batendo palmas, fez pedras racharem e, de dentro delas, brotar toda a água que criou rios, lagos e mares. Foi lá que a menina decidiu morar.
Diz outra história que Iemanjá estava casada com o rei Oquerê. Depois de uma briga, ela resolveu fugir, mas foi perseguida pelo marido. Na correria, acabou quebrando um frasco que sua mãe, Olocum, tinha lhe dado de presente. Dele, surgiu um rio caudaloso que ajudou Iemanjá a fugir até o mar.
Diz ainda uma terceira história que a menina Omilayó vivia chateada porque seus cabelos eram feitos de água e molhavam tudo ao redor. Até que um dia sua tia-avó contou um segredo. A tataravó da garota também tinha esses mesmos cabelos e vestia o adê —ou a coroa— de Iemanjá.
As três narrativas fazem parte de três diferentes livros para a infância. A primeira é de “Omo-Oba”, de Kiusam de Oliveira. A segunda ajuda a compor “Os Príncipes do Destino”, de Reginaldo Prandi, que já pode ser considerado um clássico. Por fim, a terceira é o fio condutor de “A Menina dos Cabelos d’Água”, de Sidnei Nogueira.
Mas, de certa forma, todas elas são fios que costuram uma mesma história —uma trama complexa e milenar que nasce na África e chega ao Brasil com as pessoas escravizadas, onde encontra terreno para se enraizar e se transformar.
Talvez o melhor início por esse caminho seja “Os Príncipes do Destino”. O livro de Reginaldo Prandi foi lançado originalmente em 2001 pela Cosac Naify e chegou a ser finalista do prêmio Jabuti. Após o fechamento da editora, a obra ganhou uma nova edição pelas mãos da Pallas, com novo projeto gráfico e ilustrações de Anna Cunha, que teve as imagens desse livro e as de “Origem” premiadas no ano passado na 29ª Bienal de Ilustração de Bratislava.
Na história, conhecemos 16 odus, ou príncipes do povo iorubá, que tinham a obrigação de guardar as principais histórias de sua gente —afinal, “saber as histórias já acontecidas, as histórias do passado,
significava para eles saber o que acontece e o que vai acontecer na vida daqueles que vivem o presente”.
Cada um dos 16 capítulos apresenta um desses príncipes, suas histórias e seus deuses —ou orixás. O odu Oxé, por exemplo, sabia todas as narrativas de amor. Já Odi falava de viagens, negócios e guerras, enquanto Ossá narrava coisas sobre a vida em família.
Com uma costura complexa, baseada em pesquisa profunda, a narrativa de Prandi alcança algo difícil. Ela consegue ser ao mesmo tempo interessante para crianças, ao apresentar todo um universo mitológico iorubá, e servir de introdução a adultos que desejam se aproximar desse universo. Esse segundo aspecto é reforçado pelo sumário, escrito para essa nova edição como uma espécie de dicionário dos orixás.
“Omo-Oba”, de Kiusam de Oliveira, segue o mesmo caminho, mas aponta suas histórias para outra faixa etária, com textos mais afinados para leitores mais novos. Assim como “Os Príncipes do Destino”, o livro também é uma reedição e apresenta contos de príncipes e princesas. Publicado originalmente em 2009 pela Mazza Edições, com ilustrações de Josias Marinho, o título recebeu um novo projeto da Companhia das Letrinhas, agora com imagens de Ayodê França.
Aqui, a realeza é representada pelos próprios orixás. Primeiro surgem as princesas. É o caso de Oiá e sua capacidade de se transformar num búfalo que corre como o vento. E de Oxum, que dança cheia de perfume. Em seguida é a vez dos príncipes. É quando conhecemos Exu, por exemplo, que vai vender uma cabra no mercado. Mas também Oxóssi e seu irmão Ogum, além de Otim, que tem corpo de mulher e é cultuado em algumas tradições como iabá —ou orixá feminino.
É justamente a iabá mais conhecida do Brasil, Iemanjá, que ajuda a costurar o terceiro livro: “A Menina dos Cabelos d’Água”. O livro do babalorixá Sidnei Nogueira, com ilustrações de Luciana Itanifè, esteve entre os títulos que inauguraram o selo Baião, o braço de literatura infantojuvenil da Todavia, no ano passado.
A história da menina Omilayó, contada no início deste texto, já é ousada desde a apresentação. Em vez de um livro encadernado convencionalmente, a obra chega às mãos dos leitores na forma de pequenos pôsteres dentro de uma caixa, nos quais há texto de um lado e imagem do outro.
Muito já foi falado sobre essa narrativa ser uma potente mensagem de autodescoberta e aceitação, uma vez que a protagonista não gosta dos seus cabelos de água e só passa a valorizá-los quando lhe contam que sua tataravó também tinha esses mesmos fios aquosos, percebendo que aquilo pode ser uma qualidade e ajudar toda a comunidade.
Mas há algo a mais. Não é à toa que Nogueira escolheu justamente os cabelos como imagem e metáfora para a ancestralidade de Omilayó. No candomblé e em outras religiões de matriz africana, um dos principais orixás que regem a vida das pessoas é chamado de orixá de frente ou orixá de cabeça.
E é na cabeça que a protagonista leva Iemanjá, entidade que dá profundidade ao livro, ajuda a menina a espalhar suas águas e cria uma leitura religiosa delicada. No fundo, o que acompanhamos é a descoberta da garota como filha de santo, a partir do espelhamento com sua tataravó, retratada nas ilustrações com roupas, tambores e outros objetos de terreiro. Mas o livro faz isso sem se afastar da literatura nem se tornar impenetrável a leitores que não conhecem os meandros das religiões.
É o contrário. “Os Príncipes do Destino”, “Omo-Oba” e “A Menina dos Cabelos d’Água” são janelas literárias. Abrem-se para um Brasil que o Brasil historicamente e sistematicamente procurou esconder e silenciar.
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Fonte: Uol