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Num quarto de hotel, uma pessoa faz o que pode para mitigar o frio que invade o cômodo por uma fresta. Empilha os poucos cobertores disponíveis, apela para a colcha que há pouco recobria a cama, mas nada de conseguir se aquecer. No fim, tem a ideia de dobrar todos aqueles panos ao meio para, enfim, descansar.
A história aconteceu com o próprio Caetano Galindo. “Naquela noite, pensei que queria escrever aquilo e, não sei por quê, que aconteceria com uma mulher, e essa mulher se chamaria Lia”, diz o professor e tradutor curitibano sobre o seu primeiro romance, intitulado em honra à protagonista, publicado agora pela Companhia das Letras.
Foi também assim, quase que por acaso e sem muita pretensão, que Galindo, tradutor de autores como James Joyce, J. D. Salinger e David Foster Wallace, pôs a literatura no centro da sua vida.
Ele conta que, apesar de escrever desde a adolescência, seu verdadeiro interesse sempre foi a música, que precisou largar após uma lesão. Sem saber ao certo o que cursar que não o conservatório, acabou indo para a faculdade de letras.
Mas o novo ofício, que inclui uma cátedra na Universidade Federal do Paraná, nunca substituiu por completo aquele lugar em suas aspirações. “Tenho a sensação de que o que me chamava e podia me levar por esse caminho de querer atingir coisas era a música, e esta me foi tirada”, declara.
Daí, talvez, venha a maneira pé no chão com que fala de suas incursões literárias, que inclui ainda a seleção de contos “Sobre os Canibais”, de 2019.
Galindo diz ainda que a experiência como tradutor reforçou a serenidade com que lida com o próprio processo criativo. “Traduzir gente muito grande é ganhar consciência da distância astronômica que existe entre o que eu sou capaz de conceber e o que essas pessoas fizeram”, afirma ele.
“Chega uma idade em que você aceita que não vai ser o tipo de escritor que idolatrava ou que imaginava que seria, você vai ser você. E começa a conviver com as suas limitações e suas capacidades de um jeito menos torturado.”
No caso de Galindo, essa limitação seria a escrita fragmentária —o que pode causar algum estranhamento para quem o conhece por sua tradução de “Ulisses”, um monumento em forma de prosa, ou por “Latim em Pó”, carismática sistematização da história da língua portuguesa que lançou no ano passado.
Ele conta que, por mais que admire quem constrói grandes enredos cheios de camadas, é a partir de trechos soltos que escreve ficção com mais naturalidade. Seu livro de contos, por exemplo, é uma coletânea de textos que ele vinha acumulando ao longo dos anos.
Já “Lia”, que ele lança agora, tem ainda uma outra justificativa para o seu formato. Seus capítulos a princípio foram publicados semanalmente de 2019 a 2021 no Plural, jornal independente de Curitiba criado por seu irmão, Rogério Galindo, depois que este foi demitido do veículo em que trabalhava.
“Num certo sentido, [o livro] tem essa marca da história do Brasil. Meu irmão era colunista de política e perdeu o emprego assim que saiu o resultado do segundo turno das eleições [de 2018, que levaram Jair Bolsonaro à Presidência]”, diz o escritor e tradutor.
“Ele precisava de algo que chamasse a atenção. Eu, na minha noção equivocada de gente de letras, pensei que uma coisa que podia chamar atenção era um folhetim.”
O livro não obedece, porém, à fórmula tradicional do formato. Em vez de encerrar os episódios com ganchos fortes, em uma tentativa de fazer o leitor voltar à história na semana seguinte, Galindo preferiu escrever textos autônomos, que poderiam ser lidos em qualquer ordem.
O romance final remete, assim, mais a um álbum de fotografias do que um filme. Cada capítulo retrata pequenos momentos discretos, mas significativos da vida da protagonista —um acidente na infância, um conflito quando adulta, pequenas realizações que dão pistas esparsas para entender quem foi ela.
Galindo afirma acreditar que “Lia” não é o tipo de coisa que tem mais tem espaço no mercado hoje. “Tenho a impressão de que uma parcela grande da literatura que chama a atenção, que concorre a prêmios e ganha manchetes, é definida menos por questões formais do que pelas de conteúdo —identitárias de várias naturezas, autobiográficas, ou relacionadas à história.”
Ele emenda que essas obras representam um acerto de contas histórico e têm um valor que transcende a arte. O problema, acrescenta, é quando isso torna a arte homogênea.
Galindo ainda se lançou recentemente como dramaturgo com “Ana Lívia”, peça escrita para a atriz Bete Coelho cuja primeira montagem, encenada no final do ano passado, ganhou direção de Daniela Thomas. O escritor assume a mesma postura que tem em relação à literatura quando fala de teatro.
“São coisas que gosto muito de fazer, que acho que podem fazer alguma diferença. Mas não tenho motor interno para continuar produzindo literatura se ninguém tiver interesse”, ele diz, logo em seguida se censurando, bem-humorado. “Parece chantagem com o público, né? ‘É só vocês não comprarem isso que eu não publico mais nada’.”
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Fonte: Uol