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Hoje, com o mundo ao alcance dos nossos dedos pela tela do celular, é fácil desconsiderar que houve um tempo em que quase tudo era desconhecido.
Quando o piloto inglês John Blackthorne, papel de Cosmo Jarvis, partiu de Roterdã, em 1598, em um dos cinco navios holandeses incumbidos de atravessar o traiçoeiro estreito de Magalhães, adentrar o oceano Pacífico e confirmar a existência e a localização do Japão, o desconhecido representava perigo, mas também possibilidade.
Os espanhóis guardavam o segredo de como vencer a passagem pelo extremo sul das Américas e os portugueses dominavam o comércio de produtos da Ásia. A frota holandesa pretendia, com segredos roubados dos ibéricos, chegar ao Japão para estabelecer uma parceria comercial direta, rompendo a hegemonia dos jesuítas lusos.
Quase dois anos depois da partida, quando começa “Xógum: A Gloriosa Saga do Japão”, os 12 marujos remanescentes a bordo do Erasmus, única embarcação sobrevivente da missão, já não acreditavam tanto em possibilidades ou mesmo na chance de uma morte digna. É quando se deparam com o Japão.
A chegada dos estrangeiros se dá em um momento de instabilidade política. O equilíbrio fino mantido entre os cinco lordes, os bushôs, do Conselho de Regentes que governa o Japão durante a infância do herdeiro está prestes a desmoronar.
Toranaga, vivido por Hiroyuki Sanada, um dos bushôs, vê em Blackthorne —logo apelidado de Anjin, “piloto”— a ameaça do desconhecido, mas também suas possibilidades. Como protestante, o inglês tem os portugueses e católicos como inimigos.
Descendente de uma linhagem de homens poderosos, Toranaga resiste à ideia de um dia também se tornar o xógum, um general de exército que comanda de fato a nação sob um imperador simbólico.
Da sua parte, Anjin sabe que o interesse de Toranaga por sua história é a única e temporária garantia que tem de permanecer vivo.
Para mediar a relação entre os dois, num papel de confidente, conselheira e tradutora, entra Toda Mariko, interpretada por Anna Sawai, uma católica de instintos fortes e uma linhagem em desgraça, que precisa provar que seu valor e lealdade correspondem à confiança que Toranaga nela deposita.
“Xógum”, que estreia nesta terça simultaneamente na Disney+ e na Star+, é a história do encontro entre dois desconhecidos e sua parceria vital à beira de uma guerra civil que definirá o século e a história do Japão.
Nos dois primeiros episódios, que vão ao ar juntos e foram exibidos à imprensa na semana passada, o ritmo de exposição de informações é implacável: nomes, lugares, cargos, aliados, inimigos passam voando, demandando a atenção completa do espectador. Lembra outras sagas televisivas, como “Game of Thrones”, mas sem tantos seios desnudos.
A velocidade da narrativa não se dá sem razão: a história é adaptada do best-seller “Xógum”, de James Clavell, um catatau de mais de mil páginas lançado em 1975, inspirado na história real do navegador inglês William Adams, que morreu como um samurai ocidental em 1620.
Felizmente, o tratamento visual dado à série torna a tarefa de manter os olhos nela fácil, não só pela bela fotografia, como pelo cuidado minucioso aparente em todos os níveis —a produção contou com três supervisores de gestos, responsáveis por garantir que os atores todos se movessem e manuseassem objetos de maneira correta para a cultura e o período.
A missão de dar à adaptação ares de autenticidade e fidelidade, encampada desde a raiz pelos cocriadores Justin Marks —indicado ao Oscar no ano passado pelo roteiro de “Top Gun: Maverick”— e Rachel Kondo, vem corrigir os erros da primeira versão televisiva da saga.
Uma minissérie de 1980, estrelada pelo galã Richard Chamberlain e com narração de Orson Welles (sim, aquele), carrega o mérito de ser a primeira produção americana filmada inteiramente no Japão.
Por outro lado, apesar de contar com o lendário Toshiro Mifune (“Os Sete Samurais”) no papel de Toranaga, a série nem sequer legendava as falas das personagens japonesas: seus pensamentos são mantidos inteiramente a distância do espectador, reforçando uma visão preconceituosa de um povo exótico e incompreensível.
A ver se os demais episódios desta nova versão dão conta de administrar o volume de personagens e a velocidade narrativa de maneira satisfatória. Mas essa é a graça do desconhecido.
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Fonte: Uol