[ad_1]
Ao gravar “La Mer”, clássico do francês Charles Trenet, composto em 1943, Caetano Veloso reafirma a sua consciência crítica sobre o poder da canção. O intérprete baiano retorna a um dos fundamentos da forma composicional, despertando o histórico intercâmbio entre brasileiros e franceses.
Do mesmo modo, opera uma intervenção no pensamento sobre o nosso cancioneiro, agora por demais anglicizado, espremido entre as narrativas épicas de Dylans e Cohens e a homogeneização estética imposta pela indústria do TikTok.
O single, disponibilizado nesta sexta (23) nas plataformas digitais, não se limita a servir de trilha para “Une Famille”, filme da diretora Christine Angot recém-apresentado na 74ª edição do Festival de Berlim. O clipe, captado à beira do Porto da Barra, em Salvador, evidencia o significado primeiro da composição. Nas imagens, Caetano admira o sol se desmanchando no oceano, num confronto existencial entre o homem e o mar.
Ao longo da história, diversas representações artísticas deram conta do embate. No que se restringe à canção, a poética de Dorival Caymmi, atualizada a partir dos anos 1990 pela trilogia marítima de Adriana Calcanhotto, elege o mar, um lugar desconhecido, como metáfora da condição humana.
Pois Caetano ressalta, agora, esse mistério, em voz e violão, modificando o andamento musical. Influenciada pelo jazz, a “chanson” de Trenet se esmerava na síncope, os acordes pontuando cada sílaba, e soava até altissonante, com o cantor projetando a voz.
O mar de Caetano, no entanto, está calmo. Envolta numa ambiência “cool”, adequada às suas férias radicais na capital baiana, a gravação é entrecortada pelos silêncios do violão de nylon. As pausas indeterminam a melodia, aguçando a curiosidade do ouvinte. Com a mesma sedução, o canto joãogilbertiano do artista se mostra pacificador, estando a serviço da poesia.
Se a interpretação de Trenet vislumbra a grandiosidade do oceano, Caetano examina, gota a gota, esse lugar desconhecido. Por extensão, o artista encontra o mistério no interior de cada verso. A letra de “La Mer” é permeada por formas etéreas, com “anjos tão puros” e “reflexos prateados”. Nas imagens, reside uma distinção da “chanson”: a fidelidade de suas letras à poesia simbolista, de Paul Verlaine e Arthur Rimbaud.
Musicalmente, o artista se vale de um falsete para em “oiseaux blancs” — pássaros brancos, em português— exprimir uma sensação vaporosa, própria da paisagem marítima.
Caetano interpretou “La Mer” em turnês internacionais. Sua relação com a música francesa se estende ao registro de “Dans Mon Île”, de Henri Salvador e Maurice Pon, em seu disco “Outras Palavras”, de 1981. Quase 30 anos depois, ele se apresentou, em São Paulo, com Jane Birkin num tributo a Serge Gainsbourg, realizado pela Orquestra Imperial.
As relações entre a “chanson” e a música brasileira são antigas e ultrapassam os limites da música popular. Comercialmente, a indústria fonográfica identificou, nos anos 1950, o sucesso da bossa nova nos principais centros urbanos da França. A recíproca era verdadeira, posto que “La Mer” se tornou um sucesso radiofônico no Brasil.
Do mesmo modo, não se pode ignorar a importância dos compositores franceses para a formação da modernidade brasileira. Jovem, Heitor Villa-Lobos queria seguir os passos de Claude Debussy, autor de um poema sinfônico homônimo à canção de Trenet.
Em sentido oposto, Darius Milhaud, visitando o Rio de Janeiro, em 1917, na companhia do poeta Paul Claudel, se encantou pelos ritmos daqui, os incorporando à obra “Le Boeuf Sur le Toît”. Pouco tempo depois, o maxixe seria febre na capital francesa.
Na era do TikTok, toda canção numa plataforma digital é um acontecimento. É ainda mais interessante Caetano olhar para um clássico francês, num momento de primazia da língua inglesa e de valorização dos compositores anglófonos, como Bob Dylan, que venceu o Nobel de Literatura em 2016. Não se nega o brilhantismo do “bardo judeu romântico de Minnesota”. Dele, Caetano gravou “Jokerman”, em 1992, no disco “Circuladô: Ao Vivo”.
Ocorre que, ao contrário do que muitos pensam, a história da canção não se iniciou com o autor de “Blowing In The Wind”. Ninguém fala de Barbara, Léo Ferré e Georges Brassens, para citar nomes franceses. Em última instância, a maioria dos nossos “poetas da canção” não dialogam tanto com as epopeias dylanescas.
Somos líricos. Os anjos puros que surgem do fundo do mar combinam mais com o amor, o sorriso e a flor.
[ad_2]
Fonte: Uol