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“Como vocês vivem?” A pergunta parece ser feita por uma criança, mas vem do japonês Hayao Miyazaki, de 83 anos, dono dos maiores sucessos do Studio Ghibli, como “A Viagem de Chihiro”, vencedor do Oscar, e “Meu Vizinho Totoro”.
Mas essa questão, que dá nome ao novo filme do diretor —o primeiro em dez anos, desde que anunciou sua aposentadoria após “Vidas ao Vento”—, chega ao Brasil nesta quinta-feira como “O Menino e a Garça”.
A tradução não é enganosa. Há, de fato, um menino e uma garça, e o enredo é a típica fábula onírica do autor que tanto influenciou nomes como Steven Spielberg e James Cameron. Mas, traduzido para o gosto médio do Ocidente, o título não dá a dimensão autobiográfica da nova obra, a mais pessoal de todas, segundo o diretor.
Quando estreou no festival de San Sebastián, na Espanha, em setembro, “O Menino e a Garça” estava envolto em mistério. Só com um pôster e uma sinopse vaga, especulavam sobre a ligação com o livro homônimo “Como Vocês Vivem?”, de Genzaburo Yoshino, best-seller de 1937 nunca publicado no Brasil.
Miyazaki tem o livro como norte, mas não adapta literalmente essa história sobre um garoto que acabou de perder o pai e aprende como superar as adversidades da juventude com conselhos de um tio.
No filme, seguimos Mahito, um menino que se muda de Tóquio para o campo depois da morte da mãe num incêndio durante a guerra. Ele acompanha o pai, Shoici, um industrial do ramo de aviação, assim como o pai de Miyazaki, recém-casado com sua cunhada, Natsuko. A mulher é idêntica à mãe do garoto e está grávida.
Quando ela some após adentrar um bosque, o jovem será guiado por uma garça falante a um mundo paralelo para resgatar Natsuko e conhecer um misterioso tio-bisavô, que deixou a realidade para se tornar o demiurgo dessa dimensão que desafia o tempo e a morte.
A entrada fica numa torre abandonada, cujo umbral traz, não por acaso, uma inscrição do “Inferno” de Dante. Para além desse portal se desdobra um reino de seres de outros tempos, mas que espelham a realidade de Mahito. Curiosamente, aqui, as aves são sempre hostis, com pelicanos que se alimentam de almas e periquitos gigantes comedores de humanos.
Tão mágicas quanto o restante de suas criações, essas metáforas ajudam Miyazaki a passar sua vida e carreira a limpo, expiando as angústias após a morte de Isao Takahata, em 2018, seu mestre e rival no Studio Ghibli.
“Miyazaki é Mahito, Takahata é o tio, e eu sou a garça”, disse Toshio Suzuki, produtor do longa, numa entrevista na ocasião da estreia nos Estados Unidos. O tio é representado como um ancião recluso, com fartos bigodes e cabelos brancos, lembrando a introspecção do autor de “O Túmulo dos Vagalumes”. Já a garça é atrapalhada e malandra, um jeito bonachão de Miyazaki representar o produtor que o atazana desde os anos 1980, quando juntos fundaram o Ghibli.
Hoje presidente do estúdio, o homem de negócios administra a empresa que, mesmo liderando as bilheterias no Japão a cada lançamento —”O Menino e a Garça” foi o terceiro filme mais visto no país no ano passado—, sobrevive pelo merchandising e abriu, em 2022, um parque temático.
Afinal, apesar de comparações com a Disney, o estúdio se opõe à indústria ocidental, preservando animações contemplativas, complexas e feitas à mão. No caso de “O Menino e a Garça” foram sete anos de produção, com diversas mudanças de rumo. Mahito, por exemplo, teria mais interações com o tio na história, mas a morte de Takahata obrigou o diretor a representar sua ausência.
Em perspectiva, esse 12º longa é um dos pontos altos da sua obra. Poeta dos ventos, dos voos e da beleza do invisível, Miyazaki chega à maturidade lembrando que é preciso saber viver, mas sem perder o idealismo.
“O Menino e a Garça” complementa seu filme anterior, “Vidas ao Vento”, cuja epígrafe era um verso de Paul Valéry —”o vento se ergue, devemos tentar viver”.
O trabalho, anunciado em 2013 como seu último longa antes da aposentadoria, parecia mesmo um testamento de tão melancólico. Como um “Oppenheimer” japonês, Miyazaki, pacifista militante, animou a biografia do engenheiro aeronáutico Jiro Horikoshi, cujos caças foram adotados pelos kamikazes.
Repleto de referências à sua infância e a seu pai, “Vidas ao Vento” foi um adeus de Miyazaki como homem. Já “O Menino e a Garça”, na sua relação com a figura materna, a velhice e o luto, dá o tom da despedida de um artista.
Se a repetição era sinônimo de estilo para Hitchcock, não é à toa que este filme lembre os melhores momentos do cineasta. Há crianças presas em um mundo fantástico e hostil, cheio de espíritos e criaturas sábias e de aparências enganosas —como em “A Viagem de Chihiro”—, além de torres e castelos vivos e fartamente decorados —como em “O Castelo Animado”.
A morte e a doença rondam as personagens como em “Meu Vizinho Totoro”, mas sempre com o contraponto da filosofia xintoísta, do folclore japonês e do equilíbrio homem-natureza, qual “Princesa Mononoke” e “Nausicaä do Vale do Vento”.
Mas Mahito tem algo de original. Sua bravura se confunde com orgulho, e, ao longo da jornada, ele se recusa a ver o mundo por uma nova perspectiva. É paradoxal para um alter ego do próprio Miyazaki, cujos personagens sempre encontram libertação nos céus.
Eles voam para crescer, voam em direção às utopias e à pureza da infância, para longe das guerras, voam para a morte para abrir asas à vida. Pé no chão, Mahito encontra o tio-bisavô numa torre inacessível, onde vive como um deus daquela dimensão.
“Estou velho e procuro um sucessor”, diz ele a Mahito. “Você vai continuar meu trabalho? Meu sucessor deve vir da minha linhagem.” Sem entrar em spoilers, a resposta do jovem resume a relação do cineasta com Takahata, que o revelou como talento ainda nos anos 1970.
Dessa vez, como já confirmou Suzuki, o produtor, Miyazaki não fala mais em aposentadoria, mas tampouco há um novo projeto em vista ou um sucessor. Outros talentos da casa saíram para fundar seus próprios estúdios ou morreram.
O novo filme também recupera a turbulenta relação do diretor com seu filho, Goro Miyazaki, autor de dois filmes do estúdio, mas que nunca teve grande sucesso nem reconhecimento do pai. Ele ficou célebre por reconhecer sua falta de experiência e falar publicamente de Miyazaki como um pai ausente e um artista exigente demais. Arquiteto de formação, Goro Miyazaki hoje prefere cuidar do legado do pai tocando o parque do Ghibli que projetou em Nagoya, a cerca de 300 quilômetros de Tóquio.
Esse impasse do estúdio, entre a nostalgia e um destino incerto, casa bem com o final tanto abrupto como positivo de “O Menino e a Garça”. Como em todos os filmes de Miyazaki, há sempre um vazio que nos pega de assalto e preenche de saudade —nunca se sabe bem do quê.
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Fonte: Uol