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Alguma coisa aconteceu com Amanda. Nem ela nem nós sabemos o que é. Sabemos apenas que a mulher, meio grogue, conversa com um interlocutor misterioso que a obriga a procurar “o que é importante”, ou seja, o ponto exato em que sua vida degringolou e tomou um rumo fatal.
No tenso relato de “Distância de Resgate”, a argentina Samanta Schweblin mantém seus leitores o tempo todo no fio da navalha. É um romance de leitura voraz, em que acompanhamos por cem páginas uma protagonista buscando entender, sôfrega, que diabo está havendo.
A escrita febril tem feito de Schweblin uma das mais premiadas escritoras de seu país —esta novela curtinha, por exemplo, acabou finalista do prêmio Booker Internacional. Como a autora obtém esse efeito é, portanto, algo que merece ser escrutinado.
“Eu me aborreço muito fácil como leitora e também me encho da minha própria escrita”, conta ela, de bom humor, durante uma entrevista por vídeo. “Isso exige que eu avance em direção às minhas intuições, mas também brigue com elas, contra os meus lugares-comuns. Gosto de pensar detalhadamente no que ocorre entre uma palavra e outra, entre uma oração e a próxima.”
A escritora de 45 anos costuma dizer que um livro é sempre mais inteligente que seu autor, porque resulta do trabalho dele somado ao de quem lê. À Folha, explica que essa interação obedece à etiqueta de uma dança.
“O autor pode construir a maquinaria que quiser, mas não pode pisar no pé do outro. Aquilo que diz o escritor é acompanhado do pensamento do leitor, mas o texto não deve dizer esse pensamento. Há coisas que acontecem na página e outras que acontecem na cabeça de quem lê, e as duas não devem pisar uma na outra. Você tem que abrir espaço ao outro, se não, dança sozinha.”
A Fósforo está empenhada em valsar todos os compassos de Schweblin, publicando agora uma edição de “Distância de Resgate” com nova tradução de Joca Reiners Terron —a anterior, da Record, saiu no país pouco tempo depois de seu lançamento original, há dez anos.
Também já estão no catálogo da editora o romance “Kentukis”, uma espécie de distopia que mostra a relação de pessoas solitárias com bichinhos fofos que funcionam como avatares macabros; e uma coletânea de contos reunindo “Pássaros na Boca” e “Sete Casas Vazias”.
O primeiro foi responsável por dar à autora o prestigioso prêmio Casa de las Américas, em 2008; e o segundo tornou Schweblin a primeira escritora argentina desde Julio Cortázar a vencer o americano National Book Award, há dois anos.
Neles, há histórias como a de um aprendiz de matador de aluguel obrigado a cortar um coração em um teste; de uma menina prestes a ser sequestrada por um pedófilo que a convida para comprar calcinhas, num relato feito do ponto de vista dela; e de um marido que comete feminicídio e vê, pasmo, o corpo destroçado da mulher se tornar uma peça festejada em museus de arte.
Há pouco em comum entre as tramas da autora. Todas são, no entanto, sucintas: Schweblin não gosta de se demorar e, se faz um plano para uma história de 60 páginas, tende a terminar com 20 no papel e 40 na lixeira.
Todas também são invariavelmente perturbadoras. A autora não rejeita o rótulo de terror para suas narrativas (“é um estado muito interessante”), mas diz não trabalhar dentro de normas de gênero.
“Ao ler livros policiais, de ficção científica, por exemplo, há uma série de leis internas que regem a experiência de acompanhar o herói. E me parece que o espaço do insólito tem muito menos regras. Você [o leitor] não sabe se é para [o personagem] sair correndo porque ali tem um monstro, ou se pode ficar tranquilo porque está tudo na sua cabeça.”
A escritora afirma se interessar “muitíssimo pela iminência, o momento prévio ao horror”. Conta ficar fascinada pela paralisia de quando se está absolutamente apavorado, que demole qualquer preconceito ou regra de convívio. É quando você deixa de ter juízo, diz ela —material apetitoso para a literatura.
Quem ler “Distância de Resgate” vai entender bem o que ela quer dizer. Aos poucos se esclarece uma narrativa que envolve a protagonista Amanda, uma amiga com quem ela passa férias e os filhos de ambas, todos subitamente acossados por uma ameaça invisível, talvez sobrenatural.
Schweblin lembra que, na época em que o livro saiu, a primeira pergunta que todo jornalista fazia era se ela tinha filhos (não tem). Não é preciso ser mãe, completa, para ser sensível à maternidade. É como perguntar a um autor de livros de detetive se ele sai matando pessoas no fim de semana.
O título da novela faz referência a uma característica inata à maternidade. “Quando temos filhos, podemos estar papeando com um amigo tomando sol, mas no fundo toda a nossa atenção está neles. Estamos o tempo todo medindo os cenários possíveis: se a menina cai no fundo da piscina, quantos segundos eu levo para correr até ela?”
É um prato cheio para qualquer suspense: o estado de constante alerta, o medo incessante e quase paranoico de que algum mal desconhecido venha a se abater sobre eles.
Conversando confusa com seu interlocutor enquanto tenta juntar as peças de sua memória, Amanda volta sempre a uma pergunta irremediável: “Onde está minha filha, o que aconteceu com Nina?”.
Quanto mais tempo passa sem que a resposta seja dada, maior a aflição —da personagem e dos leitores. “O nível de atenção em situações assim me fascina, porque põe o leitor num lugar de querer apenas entender”, alegra-se ela. “É um momento de atenção máxima que, para mim, se aproxima de uma experiência mística. Quase religiosa.”
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Fonte: Uol