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Escritora suspeita de assassinato ou esposa de um nazista, os holofotes do tapete vermelho estão sobre Sandra Huller. A atriz alemã protagoniza dois dos principais filmes do ano, que acumulam, juntos, dez indicações ao Oscar.
Com “Anatomia de uma Queda”, Huller concorre à estatueta de melhor atriz, e a França volta a ter o prestígio da Academia, ainda que o longa não tenha sido selecionado pelo governo para concorrer a melhor filme internacional, depois que a diretora, Justine Triet, fez um discurso crítico contra a agenda neoliberal do presidente Emmanuel Macron ao receber a Palma de Ouro, em Cannes.
É “Zona de Interesse” que concorre na categoria. No filme do britânico Jonathan Glazer, a atriz encarna Hedwig Ross, esposa de Rudolf Hoss, que comandou o campo de extermínio de Auschwitz na Alemanha nazista.
“Estou feliz que os filmes internacionais têm mais reconhecimento hoje em dia. Isso abre espaço para outras formas [de fazer cinema] e de experimentos”, diz Huller em conversa por vídeo, com a mesma sobriedade que contagia seus personagens e a faz esboçar poucos sorrisos nas premiações. “Mas não acho que furei a bolha. Hollywood jamais permitiria isso.”
Em 2016, Huller ganhou projeção internacional por “Toni Erdmann”, de Maren Ade, filme alemão em que interpreta uma consultora viciada em trabalho que aconselha executivos americanos sobre como fazer seus negócios prosperarem na Romênia –que, até a queda do Muro de Berlim, era socialista.
Sua rigidez se desfaz conforme ela convive com o pai, um professor de música sensível e jocoso, que leva a filha a encarar a vida com uma leveza proibida no mundo de metas e lucros.
Apesar do sucesso, Hollywood não importou Huller, como aconteceu com o também alemão Christoph Waltz, por exemplo, ou com a própria Justine Triet, que assinou recentemente um contrato com a agência americana CAA. Agora, com sua onipresença em todas as premiações desta temporada, pode ser que os ventos mudem.
O domínio de várias línguas é uma vantagem. Além do alemão, Huller é fluente em inglês e fala francês, assim como Sandra, sua xará, em “Anatomia de uma Queda”. “Atuar em diferentes línguas é libertador, porque você não se apega a detalhes da linguagem. Quando filmo em alemão, me atento a cada palavrinha e analiso se ela é apropriada para a época e o local onde os personagens vivem”, diz, séria.
Os olhos azuis, cabelos loiros, as maçãs do rosto avantajadas e o comedimento em sua voz a aproximam do estereótipo alemão, despedaçado pela intensidade com que, progressivamente, ela transborda as emoções de seus personagens.
“Eu preciso ser transparente o suficiente para fazer com que meus sentimentos e intenções sejam críveis. A língua é só outra ferramenta de transporte”, afirma. Algo que ela aprendeu no teatro, onde, segundo ela, a palavra é a última a ser usada.
Foi nos palcos efervescentes de Berlim que Huller se formou atriz, ainda jovem, quando se mudou para a capital alemã. Apesar da carreira promissora no cinema, que começou em 2006 com “Requiem”, de Hans-Christian Schmid, ela não pretende abandonar os palcos.
Em 2019, deu vida a Hamlet no Schauspielhaus Bochum, um dos teatros mais consagrados do país. Na adaptação, o corpo do príncipe era infectado pela podridão dos seus antecessores quando possuído pelo fantasma de seu pai.
Huller era dois em um e, com tremores e andar cambaleante, contagiou todos os presentes com a perturbação de Hamlet, descreveu a revista alemã Der Spiegel.
Em “Anatomia de uma Queda”, Huller é acusada de assassinato depois que seu marido é encontrado morto na neve. O corpo despencou do último andar do chalé onde ela mora com ele e com o filho cego, de 12 anos, nos Alpes franceses. Mas a investigação principal é, na realidade, sobre culpa e codependência em uma relação carcomida pelo tempo –e o que se espera de uma mulher em um casamento.
Sandra, a protagonista, não abre mão da carreira em prol da família. Tampouco esbanja feminilidade. O rosto da atriz é por vezes enquadrado pela câmera, enquanto ela transita entre raiva, tristeza, medo e sedução, envolvendo quem vê em outra dúvida existencial, quase um “ser ou não ser” —afinal, matou ou não matou?
O ponto alto é uma discussão com o marido, usada para incriminá-la no tribunal, em que Sandra exorciza, em seu monólogo, as cobranças do morto —seu rosto enrubesce e os olhos arregalam, enquanto suas mãos tremulam e o tom de voz sobe.
Já Hedwig, sua personagem em “Zona de Interesse”, está disposta a participar de um genocídio se isso beneficiar sua família. Ela é culpada, sabe disso, e segue a façanha de viver uma vida pacata em uma casa ao lado de um campo de extermínio. A câmera não dá importância às expressões de Hedwig ou de sua família, e as cenas são filmadas à distância.
“Eu me recusei, desde o início [das filmagens], a me envolver emocionalmente ou empaticamente com Hedwig, então só tinha o corpo para atuar”, diz. Antes de membros do partido nazista, Ross e Hedwig eram agricultores e, para ela, o casal ser o motivo do sofrimento de outras pessoas já tem um impacto sobre seus corpos.
“Decidimos que eles não teriam um jeito elegante de andar. Eu acredito fortemente que um personagem é definido mais pelo que ele não consegue fazer do que pelo que ele é capaz.”
A guerra é um tema inesgotável para filmes, vide a premiação de “1917” e “Nada de Novo no Front” nas últimas edições do Oscar. E, como artista alemã, Huller já recebeu vários convites para interpretar fascistas —que recusou, por não concordar com o uso do tema como tela para dramas.
Mas ela aceitou dar vida a Hedwig porque sabia que “Zona de Interesse” traria desconforto. “O filme questiona a audiência sobre por que achamos que essas pessoas não têm nada em comum conosco e por que essa narrativa de monstros é tão forte. Minha herança alemã e as decisões de meus ancestrais estavam presentes o tempo todo durante as filmagens”, diz.
Huller nasceu em 1978, em Friedrichroda, na Alemanha socialista, quando o país estava fatiado entre Estados Unidos e União Soviética. “Eu tive sorte de nascer em um país que, apesar de não ser perfeito, era antifascista”, afirma, categoricamente.
Foi durante sua infância do lado oriental do muro que aprendeu sobre a responsabilidade individual em uma comunidade, e que a unidade faz a força. “Não éramos bombardeados com produtos. Todo mundo tinha as mesmas coisas, e se você quisesse algo especial, precisava entrar na fila, e não era garantido que ainda estaria disponível quando chegasse a sua vez. E talvez essa seja a vida mesmo, não podemos ter tudo o que queremos”, disse à revista The New Yorker.
Quando o Muro de Berlim caiu, havia alegria, mas as pessoas não sabiam, disse ela, que seus empregos seguros seriam esmagados pela mão invisível do mercado.
Hoje, o partido de extrema direita alemão Alternativa para a Alemanha (AfD) tem uma quantidade considerável de votos no que antes foi a Alemanha Oriental. O Festival de Berlim deste ano, aliás, gerou polêmica ao convidar dois membros do AfD para a cerimônia —a organização desistiu da ideia na semana passada.
“‘Zona de Interesse’ é um aviso de que pequenas decisões equivocadas podem levar a enormes catástrofes” continua Huller, antes de interromper a si própria e colocar a mão no rosto. “Ai, desculpe, por que estou falando tanto?”
Foi meio sem jeito que a atriz recebeu a chuva de aplausos no European Film Awards, ao ser eleita melhor atriz por “Anatomia de uma Queda”.
No palco, comentou sobre a estatueta: “é uma mulher”. “Trabalhar em grupo faz o sonho funcionar. Atuar não acontece em algum lugar no espaço, mas é uma ação constantemente influenciada pelo que está acontecendo no mundo”, disse, com a voz nervosa, antes de pedir um minuto de silêncio para que todos os presentes imaginassem a paz.
“Não é tempo suficiente e vocês podem continuar tentando quando quiserem”, disse. E saiu de cena.
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Fonte: Uol