[ad_1]
Primeiros minutos do filme “Bob Marley: One Love”. Na tela, a pelada na várzea, a ginga do “patwa” —língua falada na Jamaica que amacia o inglês do colonizador com influências sobretudo de idiomas africanos. As armas a tiracolo, as muitas crianças, os dreadlocks, a truculência policial, a fumaça dos baseados.
Tudo parece transportar o espectador para a periferia jamaicana de Trenchtown, na capital Kingston, anos 1970. Alegria e violência. Uma atmosfera única, mas, em alguma medida, familiar ao espectador brasileiro. Ao apontar referências, o diretor Reinaldo Marcus Green dá pistas de onde vem a sensação.
“‘Cidade de Deus’ era algo que estava na minha mente quando eu comecei a pensar neste filme”, diz o cineasta americano. “Ou ‘Orfeu Negro’. São filmes seminais para mim enquanto diretor. Lembro-me de assisti-los e ser transformado”.
“Tudo ali estava vivo. No momento em que esses filmes começam, você é enriquecido por aquela cultura, por aquela comunidade, por aquelas pessoas, e isso te leva àquele lugar”, afirma. “Eu queria que meu filme fosse assim. O cinema brasileiro tem um impacto profundo em mim como cineasta”.
Com o britânico Kingsley Ben-Adir —o Malcolm X de “Uma Noite em Miami”— no papel principal, o filme tem em muitos momentos a temperatura da periferia, no drama das balas ao brilho da música. O longa-metragem retrata um período crucial da vida de Robert Nesta, nome de batismo de Marley.
Entre 1976 e 1978, a Jamaica está dividida por uma guerra civil sangrenta na disputa pelo poder. Em meio à tensão, o cantor sofre um atentado. Decide abandonar o país e ir para Londres, onde produz um dos álbuns mais icônicos do século 20, “Exodus”.
“Nós não queríamos fazer algo do berço ao túmulo”, diz o diretor. “Queríamos mostrar uma janela da vida de Bob. Escolhemos de 1976 a 1978 porque havia ali sua criação, sua genialidade, durante um momento de extrema violência política e desordem civil na Jamaica. Foi um período muito rico. Há cenas de sua infância e juventude, mas mais para apoiar a história que estávamos contando do que para tentar dar conta de sua vida.”
“One Love” procura, portanto, fazer mais do que trazer bastidores da produção de “Exodus” ou delinear a importância política e cultural do artista. Estão ali a relação amorosa e tensa com sua mulher, Rita Marley, vivida por Lashana Lynch. Da mesma forma, as batalhas pessoais e emocionais do artista — a certa altura, ele diz: “Como posso levar a paz se não tenho a paz pra mim mesmo?”. Atravessando tudo, a questão conflituosa da paternidade —Marley era filho de um pai branco que o renegou.
Ben-Adir conta que procurou viver Marley menos como uma estrela da música e mais a partir do entendimento de “suas esperanças, medos e sonhos”. “É um olhar realmente humano sobre ele, com o objetivo de fazer algo diferente de um documentário ou de assistir a uma performance sua no YouTube. É um filme sobre o lado humano da lenda, o que para mim, como artista, é sempre atraente”.
“One Love” traz outro desafio para o diretor e o elenco. O filme é falado em “patwa”. “Não é um dialeto, é realmente uma língua estrangeira”, diz Ben-Adir. “Tive um apoio de muita gente para fazer a sintonia fina e garantir que, foneticamente, tudo ali fosse algo que Bob disse ou poderia ter dito.”
“Tínhamos que alcançar um equilíbrio”, completa o diretor. “Como faríamos isso de uma maneira que não fosse necessário legendar o filme? Foi tentativa e erro, e acredito que chegamos a um bom lugar”.
Ben-Adir nota que nunca gastou tanto tempo de sua vida dedicado a uma só pessoa. “Bob esteve na minha mente por aproximadamente dois anos. Eu estava constantemente pensando sobre como ele teria reagido a certa situação que eu estava passando, o que ele diria”.
A família de Marley participou de todo o processo. “Foi um privilégio enorme ter acesso aos familiares de Bob, o que tornou este projeto de qualquer outro”, conta Ben-Adir. Ziggy Marley, filho do cantor, foi o principal interlocutor do ator ao longo de sua preparação.
“É difícil resumir como foi o tempo que eu passei com Ziggy porque nós conversávamos todos os dias por um longo período. Falávamos de tudo. Posso dizer que, sem ele ali, não haveria filme. Sem o apoio da família não seria possível. Ziggy foi quem me deu força, me deu confiança. Acredito que eles sabiam que havia ali um ator que iria tentar e chegar lá.”
A mensagem de Marley sintetizada no título, “One Love”, está presente no filme em sua vida pessoal, sua atuação pública e nos versos de suas canções. Para o diretor, essa é uma ideia central da obra, apontar para a perspectiva de união e amor que o músico ergueu. Uma perspectiva que ele vê como necessária em qualquer época.
“O que faz qualquer obra de arte significativa é o fato de ela ser atemporal”, afirma. “Nunca será a hora errada para a paz e a união, e essa é a beleza da música de Bob. Claro que há momentos como este, no qual há tanta coisa acontecendo, que a música, como linguagem universal, pode ser usada como cura. Mas a mensagem de Bob sempre será importante”.
Em favor da universalidade de Marley, Green prefere não destacar o fato de ser um diretor negro a contar a história do artista. “Eu não cresci em Trenchtown, eu não cresci numa guerra civil. Na verdade, cresci em uma guerra civil diferente nos Estados Unidos, não era como na Jamaica. Mas o amor é universal. A música é universal. Por que as pessoas amam Bob Marley? É pela maneira como ele fala. O que parece tão simples é tão rico”.
“Minha esperança é que o filme reacenda um compromisso com o significado das canções”, diz Ben-Adir. O ator destaca especialmente o aspecto revolucionário da mensagem de Marley, que no film.e profere frases como “todo governo neste mundo é ilegal” ou — como quando questionado sobre seu esforço talvez inútil para a melhoria do mundo — “Tem que ser feito, não tem outro jeito”.
“Sua música é tão poderosa quanto sempre foi”, diz Ben-Adir. “Espero que os jovens sejam apresentados ao poder do que ele estava dizendo em canções como ‘War’. Ele estava tentando inspirar pessoas a serem versões melhores de si mesmos. Hoje falamos de saúde mental, mas não me parece que era assim lá atrás. E Bob estava lá dizendo que tudo reside na sua mente e que você pode”.
Ben-Adir retoma uma fala de Marley que aparece no filme, na qual ele se declara um rebelde, e reflete: “Que doido é pensar que querer promover a paz, o amor, o aprimoramento pessoal, o cuidado e a humanidade seja uma rebeldia”.
[ad_2]
Fonte: Uol