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“Na tela da TV no meio desse povo, a gente vai se ver na Globo”. É difícil ouvir os versos de Jorge Aragão e não associá-los imediatamente ao corpo nu pintado de uma mulher negra sambando. Por décadas, a Globeleza reforçou esse imaginário da “mulata do samba”.
Em 2024, a vinheta da Globeleza retorna tentando mais uma vez se distanciar dessa imagem que é parte da cultura nacional televisiva. Agora surgem Alcione e Ludmilla, duas das maiores vozes da música popular brasileira, entoando o hino do Carnaval da Globo.
É simbólico que uma das maiores expressões da sexualização do corpo da mulher negra hoje dê espaço para o encontro entre duas gerações de cantoras negras, sem que isso tenha a ver com seus corpos.
A emissora arquiteta essa mudança de imagem ao longo dos últimos anos à luz do debate sobre temas como objetificação feminina, pressão estética e racismo. Criada pelo designer Hans Donner no início dos anos 1990, a vinheta deixou de ser protagonizada por uma mulher nua em 2017, quando a musa passou a sambar vestida.
Valéria Valenssa ficou eternizada no papel que ocupou entre 1990 e 2005. De lá para cá, mais quatro dançarinas passaram pelo posto. Gianne Carvalho dividiu o espaço com Valenssa em 2005, Aline Prado foi a musa entre 2006 e 2013.
Já Nayara Justino assumiu o posto em 2014 para ser substituída por Erika Moura no ano seguinte, posto que assumiu até 2021. Desde então, a vinheta trazia apenas cenas dos desfiles da escolas de samba.
Havia um padrão nas dançarinas: mulheres negras de pele clara, com corpos esguios, sorrisos perfeitos e samba irretocável.
Justino fugiu um pouco desse padrão ao tornar-se a primeira musa retinta. Ela foi eleita em um concurso nacional promovido pela emissora em 2013, para no ano seguinte sofrer uma onda de ataques racistas por ser considerada preta demais. Por isso, logo foi substituída.
Para entender o que a imagem da Globeleza representa no imaginário da cultura brasileira, podemos buscar as ideias do sociólogo Stuart Hall, em “Cultura e Representação”. Segundo ele, a cultura é um meio de representação da sociedade, mas essas representações não são necessariamente reflexos objetivos da realidade.
Pelo contrário, as representações culturais são construídas e transmitidas por meio de um processo de interpretação que pode ser influenciado por diversos fatores, como as estruturas de poder e as relações de classe.
Hall destaca que as representações culturais são construídas a partir de uma série de códigos e significados compartilhados por determinado grupo social.
Para exemplificar, uma representação como a Globeleza, que dá protagonismo para mulheres negras em um contexto sexualizado, relacionado ao samba, pode levar a crer que essas mulheres se resumem a isso.
Qual mulher negra nunca foi questionada se sabia sambar? Ou ouviu que tinha uma beleza exótica? Ou se viu em uma relação que era vista como objeto sexual? Ou ainda nunca foi considerada uma mulher que era para casar?
Com as ideias de Hall, podemos concluir que estereótipos são fundamentais para a representação das diferenças e para validar violências, sobretudo em sociedades racializadas como a nossa.
Outro exemplo extremo do impacto da forma como determinados grupos são representados é a história da negra sul-africana Sarah Baartman, que no século 19 era exibida em circos europeus devido às suas características físicas consideradas “exóticas”.
Baartman foi objetificada e explorada devido ao seu corpo, particularmente por ter nádegas grandes, o que a levou a ser tratada com curiosidade e como símbolo da suposta inferioridade racial dos africanos. Isso foi justificativa para toda prova de exploração moral e sexual.
Ela era colocada em uma jaula, com vestes que davam a impressão de nudez, e era obrigada a encenar gestos considerados selvagens para plateias que a ridicularizavam e, em seguida, se regojizavam tocando em partes de seu corpo.
A vinheta da Globo por muito tempo foi violenta para mulheres negras, não pela sensualidade, mas por reduzir a mulher preta a esse espaço social. Imaginário que perdura há tanto tempo em parte pelo reforço midiático.
Ao substituir a representação da Globeleza por Alcione e Ludmilla, a Globo corre atrás de uma redenção por essa narrativa prejudicial. Em vez de retratar as mulheres negras apenas como objetos de desejo sexual, a nova vinheta reconhece sua arte, talento e contribuição cultural para o Brasil.
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Fonte: Uol