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Há muitas razões para comemorarmos a doação da Casa Cavanelas ao Instituto Burle Marx, responsável pelo acervo e legado construído ao longo de sete décadas pelo escritório do paisagista e seus colaboradores.
A primeira se refere à casa em si, esse incrível patrimônio da arquitetura e do paisagismo modernos no Brasil. Situada na região serrana do Rio de Janeiro, a casa foi projetada em 1954 por Oscar Niemeyer. No trecho plano de um vale entre montanhas, ela tem uma delicada cobertura curva, em catenária, que se apoia sobre quatro pilares de pedra, cujos perfis já anunciam as formas de Brasília —sobretudo da igrejinha de Fátima.
Em complemento, o jardim de Burle Marx contrapõe um desenho reticulado e geométrico, de um lado, a um outro, do lado oposto, organicamente curvo, e com vegetações amarelas e vermelhas contrastando com o verde dominante.
Agora, esse lugar que há mais de seis décadas era de propriedade privada, e, portanto, de visitação restrita, estará disponível à visitação pública, a partir de 2028, e com um sensível projeto de adequação criado por Thiago Bernardes, que preserva e não interfere na parte histórica do sítio.
A segunda razão se refere à política de acervos, particularmente na área de arquitetura e artes afins. Sabemos da dificuldade que o Brasil tem com o zelo por nossa memória cultural. Incêndios, instituições depauperadas, têm sido, infelizmente, emblemas de um descaso crônico.
Na área de arquitetura, tivemos traumáticas fugas de acervos importantes para fora do país, tais como os de Paulo Mendes da Rocha e de Lucio Costa, simbolizando a tragédia cultural dos anos de governo Bolsonaro. Nesse sentido, saber que o acervo de Burle Marx e seus colaboradores será muito bem tratado, e com futura ampla acessibilidade pública, é mais do que uma alegria.
É a sinalização, talvez, de uma virada de página em nossa história. O início de um caminho mais responsável e generoso em relação à cultura e à memória, base da educação, e semente de futuros mais promissores.
Além de ter sido um pintor de reconhecida relevância, Burle Marx foi um dos mais importantes paisagistas do século 20 no mundo —talvez o maior de todos—, e tem seu trabalho amplamente celebrado internacionalmente. Valorizando as espécies vegetais nativas em um país de mentalidade colonizada, seus jardins pictóricos transportaram a sensualidade da arquitetura moderna brasileira para o mundo dos seres vivos, ampliando sua potência.
Defensor aguerrido e pioneiro da natureza e de seu manejo sustentável desde pelo menos os anos 1970 —em conflito aberto com o governo militar e com empresas que começavam a desmatar a Amazônia—, o paisagista se tornou também uma figura central na compreensão do papel do meio ambiente em nosso mundo progressivamente urbanizado. Um artista com uma incidência política importantíssima, e por isso cada vez mais atual.
Cuidar do acervo de Burle Marx e sua equipe, e torná-lo acessível ao público —brasileiro e mundial— é, portanto, uma ação fundamental. Uma ação de soberania, no melhor sentido da palavra, à altura do que podemos e devemos esperar do Brasil no presente e no futuro. Um país que proteja a floresta, que tenha uma política consistente de apoio aos povos indígenas, que se torne um líder mundial no sentido de zerar as emissões de carbono, e que, ao mesmo tempo, proteja e valorize o seu acervo cultural.
Algo que só poderá acontecer se houver uma firme aliança entre o poder público e a sociedade civil, em especial de um empresariado progressista que demonstre claramente o seu alinhamento a esse projeto de país. É o que acontece no caso dessa doação privada —que, no entanto, prefere não se identificar— ao Instituto Burle Marx.
Mas o Instituto ainda precisará de mais parceiros para sua sobrevida futura. O que está garantido, por enquanto —e já é muito—, é a estrutura física para a sua implantação. Mas isso não é suficiente. Uma das principais tarefas do porvir será a digitalização dos documentos, para sua disponibilização online.
E, ainda, os trabalhos de higienização e acondicionamento dos originais, envolvendo os custos de equipe para manutenção do acervo e recepção do público. Um grande desafio, enfim, que a nossa sociedade ainda precisará enfrentar.
“O Brasil não é para principiantes”, dizia Tom Jobim. A frase parece uma brincadeira despretensiosa. Mas é um enorme chamado de responsabilidade. Nenhum outro país do mundo produziu uma figura e uma obra à altura da de Burle Marx. Saberemos cuidar melhor do nosso patrimônio?
Se agora parece que temos razões para comemorar, é porque temos, ao mesmo tempo, razões para nos engajarmos e nos comprometermos com a construção de um futuro diferente daquele que há muito tempo nos assombra.
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Fonte: Uol