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Uma inusitada exposição está em cartaz desde novembro na tradicional Galeria Nacional de Arte Moderna e Contemporânea, em Roma, dedicada originalmente às artes visuais.
Em vez de telas ou esculturas, uma ala do museu está ocupada por objetos como um dicionário de dialetos ingleses antigos, uma escrivaninha cheia de papéis e um baú de viagem do século 19.
Trata-se da mostra “Tolkien: Homem, Professor, Autor”, que ficará exposta até 11 de fevereiro.
É uma homenagem ao escritor e professor universitário britânico John Ronald Reuel Tolkien, conhecido como J.R.R. Tolkien e autor de livros famosos em todo o planeta, como “O Hobbit” e “O Senhor dos Anéis”.
Poderia ser mais um caso de um museu que se abre para apresentar atrações populares e que transitam por diferentes meios – como, no caso, o universo do escritor e seus livros.
Mas o fato da primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, ter diversas vezes expressado sua admiração por Tolkien gerou questionamentos sobre a motivação da mostra no museu público, mantido pelo governo nacional.
Meloni é a principal liderança do Fratelli d’Italia, partido nacionalista e conservador.
Na origem do partido de direita estão ex-membros dos extintos Partido Nacional Fascista e Partido Republicano Fascista.
A primeira-ministra já se referiu a “O Senhor dos Anéis” como um “livro sagrado”.
Em sua autobiografia, Meloni relatou que, quando jovem, ela e outros ativistas do Movimento Social Italiano —fundado por veteranos fascistas— vestiam-se como os personagens da saga de Tolkien para alguns eventos.
Em 22 de setembro de 2022, no último evento da campanha que levaria Meloni ao posto máximo da política italiana, o ator Pino Insegno, dublador do personagem Aragorn na versão italiana da trilogia cinematográfica “O Senhor dos Anéis”, foi quem deu as boas-vindas a ela.
O ator fez um discurso adaptado de falas do personagem Aragorn.
Mas a admiração da obra de Tolkien pela direita italiana não é de agora e nem começou com Meloni: a tendência tem origem na década de 1970 e foi retomada na última década. Por quê?
Discurso do ‘nós contra eles’
Muitos acreditam que a identificação da direita radical com a obra de Tolkien tenha se dado de modo muito mais forte na Itália por conta da primeira tradução de “O Senhor dos Anéis” publicada lá.
Na edição, coube ao filósofo e ensaista Elémire Zolla a missão de escrever o prefácio.
Zolla não era um fascista, mas sua obra, conservadora e apegada a antigas tradições, era de alguma forma próxima à corrente ideológica dessa nova direita italiana.
Em seu texto, Zolla planta algumas sementes. Ele propõe uma leitura simbólica da obra de Tolkien, analisando a luta de Frodo e seus companheiros contra as forças obscuras como um embate entre o progresso e a tradição identitária.
Hoje deputado pelo Fratelli d’Italia, o político Basilio Catanoso declarou à imprensa em 2002 que o sucesso de “O Senhor dos Anéis”, cujo primeiro filme acabara de ser lançado, deveria ser instrumentalizado pela direita.
“Queremos usar a oportunidade como um incrível vulcão para ajudar as pessoas a entender nossa visão de mundo”, afirmou ele, que na época era líder da ala jovem do partido Alleanza Nazionale.
“Existe um profundo significado nesta obra. “O Senhor dos Anéis” é a batalha entre o indivíduo e a comunidade”, definiu Catanoso.
Professor na Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, o antropólogo brasileiro David Nemer afirmou à BBC News Brasil que os livros de Tolkien se juntam a outros que foram “apropriados” pela direita radical.
“Fazem isso porque buscam uma literatura para endossar e teorizar sua própria existência. E nada mais convincente, para fazer isso, do que pegar autores e obras já amplamente lidos e, de certa forma, aceitos na sociedade.”
“Vemos eles se apropriando de clássicos de Roma e Grécia antiga até os mais atuais, livros como 1984 de George Orwell, e ‘O Senhor dos Anéis’, de Tolkien”, analisa Nemer.
Nemer lembra da invasão do Capitólio americano, em janeiro de 2021, quando apoiadores do ex-presidente Donald Trump se manifestaram agressivamente contra a posse do seu sucessor legitimamente eleito, Joe Biden.
“Alguns usaram capacetes gregos que remetiam a obras clássicas. Eles distorcem as narrativas para reforçar um discurso de salvação da raça branca contra os bárbaros”, diz Nemer.
“Há sempre um discurso de nós contra eles. E é aí que entra a questão de ‘O Senhor dos Anéis’“, comenta.
Luta contra ‘sistema globalista’
“O Senhor dos Anéis”, uma continuidade do universo inaugurado por “O Hobbit”, gira em torno de uma batalha contra Sauron, o Senhor das Trevas, e seus seguidores, que buscam dominar toda a Terra Média.
“Não é de surpreender que eles utilizem [essa narrativa] para explicar a política do ‘nós contra eles'”, diz Nemer sobre os apoiadores da direita.
“O [personagem] Frodo é pequeno, frágil, totalmente oprimido pelo sistema. Na lógica deles, nós somos os hobbits lutando contra esse sistema globalista. E vamos lutar contra todas as forças do sistema para vencer o mal. Eles usam muito isso, veem esse homem comum branco como sendo o oprimido nessa nova ordem mundial, que é o globalismo”, pontua o antropólogo.
O “globalismo” é um termo que vem sendo usado pela direita mundial para se referir a um posicionamento que seria contrário ao nacionalismo e ao patriotismo.
Pesquisador da obra de Tolkien na Universidade de São Paulo, a USP, e cofundador do site Valinor, especializado no assunto, o jornalista Reinaldo José Lopes analisa que as disputas retratadas em “O Senhor dos Anéis” são associadas pela direita italiana a seu desejo de conter a imigração.
Para ele, esse é o principal livro de Tolkien incorporado pela direita do país.
“O Hobbit”, na sua análise, é “um livro infantil, mais ingênuo, e menos relevante” para esta interpretação política.
“[A história de ‘O Senhor dos Anéis’] Gira em torno de uma guerra de civilizações, de povos e até espécies inteligentes diferentes, na qual há sociedades bem estabelecidas na região ocidental da Terra Média […] que são atacadas e assediadas por um inimigo imperial, o Sauron”, diz Lopes, tradutor para o mercado brasileiro dos livros do autor britânico.
“O principal elemento que leva a isso [o uso pela direita italiana] é justamente o fato de enxergar a situação atual como um conflito entre o Ocidente e o resto. E esse resto estaria sob o domínio de um poder maligno.”
“Isso mexe com o imaginário desse pessoal e muitas vezes esses povos que estão atacando são retratados com uma aparência não europeia, com pele mais escura ou pele do extremo Oriente.”
Mas o tradutor frisa que, na obra de Tolkien, “não existe, a rigor, nenhuma descrição ou afirmação de que esses povos seriam intrinsecamente ruins ou perversos”.
“O que existe é o fato de eles terem sido doutrinados e corrompidos. É por isso que eles atacam”, diz Lopes. “É preciso forçar muito o cenário da obra ficcional para dizer que se aplica à situação atual da Europa.”
Nemer diz que a direita radical italiana praticou “weaponization” na obra de Tolkien —o termo, em inglês, seria o equivalente a instrumentalizar alguma coisa de forma bélica, armamentista.
“Em vida, o próprio Tolkien falou que não queria que a jornada épica do Frodo fosse interpretada como uma jornada do nosso dia a dia. Se há questões concretas, políticas, que foram materializadas na obra, ele não queria que fosse feita essa ‘weaponization’ para fins específicos, para justificar ou legitimar um governo extremista”, comenta o antropólogo.
Neste cenário, Nemer vê um conflito de interesse na exposição sobre a obra de Tolkien em um museu estatal.
“Eles estão claramente instrumentalizando uma obra para justificar a existência desses valores da extrema direita no governo”, afirma Nemer.
‘Campo Hobbit’
Mas a admiração da direita italiana com a obra de Tolkien não foi invenção de Meloni.
Para entender essa conexão é preciso recuperar as ideias de um teórico italiano que se tornou guru da direita contemporânea mundial: Julius Evola.
O controverso filósofo idealizava uma sociedade aristocrática muito próxima ao fascismo.
Em sua obra mais conhecida, “Rivolta Contro Il Mondo Moderno” —em português, “Revolta Contra O Mundo Moderno”—, o filósofo faz uma radiografia do que seria, para ele, uma Europa condenada a um declínio inexorável.
E Evola apontou duas razões para esta queda: o progresso, que afastava as pessoas das tradições; e a miscigenação cultural.
Para Evola, a Itália havia sido entregue à retórica do progresso. E a única solução seria a recuperação de mitos tradicionais por meio da arte, da religião e, claro, da política. Suas ideias encontraram solo fértil na juventude conservadora italiana.
Foi a mesma juventude que, nos anos 1970, ganhou dois livros para amar. Em 1970, saiu pela primeira vez “O Senhor dos Anéis” em italiano; em 1973, “O Hobbit”. Tolkien se tornou um fenômeno editorial no país.
Na analogia da direita, o anel de poder de Tolkien, adormecido, buscando o momento de ressurgir, era um símbolo da tradição que precisava ser recuperada.
Em 1976, jovens mulheres da direita radical italiana fundaram em Florença uma revista chamada Eowyn – nome da personagem caracterizada como mulher guerreira na obra de Tolkien.
A revista circulou até 1982.
Uma das criadoras da revista, a jornalista Flavia Perina, publicou em 2021 um artigo a respeito da publicação.
“Em ‘O Senhor dos Anéis’ há Eowyn, a princesa destinada a ficar em casa para cuidar da família enquanto os homens vão para a guerra. Ela desobedece, sai vestida de cavaleiro e, no auge da batalha, consegue derrubar o monstruoso líder dos exércitos inimigos”, escreveu Perina no jornal online Linkiesta.
A jornalista defende que as feministas de direita são mais aguerridas do que as de esquerda e parte do ponto de que elas precisam lutar até para conquistar seu espaço dentro dos partidos, já que estes não as tratam automaticamente, por estatuto, de modo igualitário.
Em 1977, os líderes da direita radical italiana resolveram transformar suas ideias e a admiração por Tolkien em um evento, que acabaria sendo chamado por detratores como a “Woodstock fascista”.
Era o Campo Hobbit, um festival-acampamento com shows, debates, palestras e muita propaganda ideológica. A primeira edição ocorreu entre as colinas de Montesarchio, na Campania, sul da Itália. O evento ainda teria duas edições até ser descontinuado em 1981, por uma série de divergências entre os organizadores.
Em análise feita pelo historiador e teórico político Roger Griffin, professor na Universidade de Oxford Brookes, no Reino Unido, o acampamento tinha a função de “recodificar” a linguagem utilizada pelos hippies, mas a partir de um outro prisma: a filosofia tradicionalista de Evola.
Entre as barracas, participantes fixaram bandeiras, em estandartes a cruz celta. No local, foram espalhados cartazes e faixas com dizeres como “a juventude europeia luta contra a subversão comunista e a escravidão capitalista”.
Os inimigos estavam declarados: os comunistas, de um lado; e os que haviam relegado o controle do mundo ao sistema financeiro, de outro.
Tolkien era conservador?
Para o filósofo e cientista social Rocco D’Ambrosio, a apropriação de obras por grupos políticos é comum “à direita, à esquerda e no centro”.
“Aqueles sem uma tradição, aqueles com problemas de identidade política e social, aqueles que desejam se apresentar com uma suposta ou real renovação tentam se apoiar em algo novo ou proveniente de outros mundos”, afirma D’Ambrosio.
Especificamente sobre o uso da obra do britânico pela direita italiana, o filósofo diz que é algo “pouco respeitoso e altamente questionável”.
“Tolkien, dizem eminentes estudiosos dele, não era de direita, nem de esquerda: era um conservador, sim, mas contra todo totalitarismo e ditadura, tanto de direita quanto de esquerda”, argumenta D’Ambrosio, professor de Filosofia Política na Pontifícia Universidade Gregoriana e de Ética na Administração Pública em curso oferecido pela Universidade de Roma La Sapienza em parceria com a Autoridade Nacional Anticorrupção, a Anac.
Reinaldo José Lopes endossa que, sim, o autor britânico era uma “figura muito conservadora”.
“Ele era um católico tradicionalista, conservador, uma pessoa que a gente classificaria [hoje] como de direita. Ao mesmo tempo, ele era libertário no sentido de que sempre criticou muito o controle político do Estado de maneira geral”, afirma o tradutor.
Lopes diz que Tolkien “sempre recusou muito fortemente” a ideia de que sua obra fosse uma alegoria “com relação direta com eventos da época dele ou de outras épocas”.
O tradutor ressalta inclusive que isto aparece no prefácio escrito pelo autor para a segunda edição de O “Senhor dos Anéis”.
“Ele dá liberdade aos leitores para aplicarem isso à realidade deles como quiserem, mas deixando claro que só queria escrever ficção, uma ficção que emocionasse e divertisse”, diz.
Mas, em outros escritos, Tolkien expressou-se claramente contra o nazismo e contra o apartheid, entre outros assuntos.
Sobre o primeiro, por exemplo, o autor chegou a escrever uma carta —que acabou nunca sendo enviada – quando foi cogitada a publicação alemã de “O Hobbit”.
Em 1938, Tolkien escreveu a editores alemães: “[…] Se devo deduzir que os senhores estão me perguntando se eu sou de origem judaica, só posso responder que lamento o fato de que aparentemente não possuo antepassados deste povo talentoso.”
Em outra carta, de 1941, Tolkien escreveu ao filho que um “tampinha ignorante chamado Adolf Hitler” estava “arruinando, pervertendo, fazendo mau uso e tornando para sempre amaldiçoado aquele nobre espírito setentrional (do Norte), uma contribuição suprema para a Europa, que eu sempre amei e tentei apresentar sob sua verdadeira luz”.
Nessa correspondência, o escritor britânico estava falando de uma ideologia que ele apelidava de “teoria da coragem do Norte”, presente na literatura medieval de língua germânica da Europa.
Essa ideologia, na interpretação de Tolkien, as forças do mal estão destinadas a triunfar e destruir os deuses e os heróis. Mas isso não impediria que o lado do bem continue lutando até o fim, para que haja uma esperança de recriação do mundo depois deles.
Essa crença no valor da coragem independentemente do resultado seria a “contribuição” – palavra usada por Tolkien na carta ao filho – da “teoria da coragem do Norte” à Europa.
Já o curador Oronzo Cilli da exposição na Itália afirma que a obra de Tolkien não virou simbólica apenas para a direita italiana.
“Tolkien se tornou uma referência para a extrema direita inglesa, que exaltava seu espírito nórdico. E, durante anos, sob o regime soviético, a venda de ‘O Senhor dos Anéis’ foi proibida […] Pois era um texto que representaria Mordor [a região controlada por Sauron] como a União Soviética. Absurdo e inconcebível”, pontua.
Em 2023, a agência antiterrorismo do governo britânico publicou uma relação de obras literárias que poderiam funcionar como gatilho para atos da direita radical. O trabalho de Tolkien foi incluído no rol, ao lado de livros de George Orwell, Aldous Huxley e outros.
Cilli lembra que, quando o primeiro filme baseado na obra de Tolkien foi lançado na Itália, em 2001, a apropriação política parecia superada.
“Tolkien havia voltado a ser o que realmente é: um clássico da literatura”, diz.
“Infelizmente, alguém quis reacender a controvérsia e propor de forma ainda mais absurda uma leitura política de Tolkien […]. Nos últimos dez anos, isso ocorreu na Itália, como qualquer pessoa no universo tolkieniano italiano sabe muito bem.”
Sobre o último capítulo controverso dessa história, Oronzo Cilli, curador da mostra “Tolkien: Homem, Professor, Autor” afirmou à BBC News Brasil por escrito que a Galeria Nacional já teve antes exposições “que colocam o livro no centro do palco”.
Cilli defende também que a mostra em homenagem a Tolkien – descrito pelo curador como “uma das mentes mais criativas e influentes da literatura mundial” – traz vários itens visuais.
“A exposição sobre Tolkien é, pelo menos em parte, uma exposição de arte visual, pois inclui mais de 100 obras de artistas italianos e internacionais reonomados no mundo da ilustração”, diz Cilli, autor do livro “Tolkien’s Library: An Annotated Checklist”.
O curador conta que, quando a exposição foi concebida, “as únicas recomendações do ministro [da Cultura Gennaro] Sangiuliano foram mostrar respeito pela memória e obra de Tolkien”.
“A escolha [do local] caiu sobre a Galeria Nacional de Arte Moderna porque é um museu estatal, promovido pelo Ministério da Cultura, e também porque é um espaço de exposição em Roma com grande prestígio”, assegurou.
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Fonte: Uol