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Entra ano, sai ano, e o Grammy continua mais ou menos o mesmo. A maior premiação da indústria, que acontece na noite deste domingo, reforça sua mistura peculiar do que é grande com o que é muito popular e o que parece agradar exclusivamente aos executivos de gravadoras de Los Angeles, nos Estados Unidos.
Este ano, a premiação tem uma maioria de mulheres nas quatro principais categorias —gravação, álbum e música do ano, além de artista revelação. SZA encabeça a lista de indicados com nove menções, seguida por Taylor Swift, Miley Cyrus, Lana Del Rey e Olivia Rodrigo.
Há a repetição de nomes que a indústria ama, como Swift e, mais recentemente, Rodrigo, mesmo que as duas não tenham lançado suas melhores obras agora. Cyrus aparece ancorada no megahit “Flowers”, enquanto Del Rey vive uma alta com a melancolia autorreferente do disco “Did You Know That There’s a Tunnel Under Ocean Blvd”, tendo conquistado prestígio e popularidade desde que retratou a decadência branca americana em “Norman Fucking Rockwell!”, de 2019.
Entre elas, SZA é a aposta mais interessante. “SOS”, seu segundo álbum da carreira, sucessor de “Ctrl”, de 2017, traz a cantora examinando o coração partido e tentando se encontrar em meio a decepções amorosas e os sentimentos de ódio e vingança que provêm delas. Um sucesso de público e crítica que vai do pop punk ao rap.
No entanto, independentemente de quem sair vencedor na cerimônia, a sensação que permanece é a de que o Grammy enxerga a música contemporânea através de uma lente embaçada. É uma situação que acompanha a história recente da premiação —e também das gravadoras, a partir das mudanças na maneira de comercialização e consumo de música.
Até o fim do século passado, quando a música ainda era física, a indústria tinha domínio completo daquilo que era lançado. Ser um artista independente antes da internet significava não só ter os meios, muito mais inacessíveis do que hoje, para produzir suas músicas, mas depender de um aparato físico de confecção e distribuição daquelas obras —seja em CDs, seja em vinis.
A virada na indústria nos anos 2000, primeiro com o compartilhamento de arquivos digitais e depois com o streaming, gerou uma crise financeira para as gravadoras. Hoje, elas recuperaram o controle do mercado, já que as plataformas voltaram a ter lucro com a música gravada, e empresas como o Spotify têm nas gravadoras suas principais acionistas.
O que mudou, e parece ser de maneira irreversível, é o domínio sobre como a música é consumida. Ainda que os algoritmos possam inflar números e impulsionar os preferidos da indústria em playlists e anúncios nas plataformas, há uma gama de artistas que produz e distribui música por conta própria. Eles conseguem alcançar um número relevante de ouvintes ao ponto de impactar de maneira profunda a arte e a cultura mundo afora.
Em 2020, o Grammy deu sinais de que poderia estar mais alinhado a essas transformações. Fenômeno na internet antes de ser abraçada pela indústria, Billie Eilish colecionou gramofones a despeito de ser uma adolescente que gravou seu primeiro álbum no quarto de casa com a ajuda do irmão, Finneas, hoje um produtor respeitado.
De lá para cá, no entanto, não surgiram outras Eilishs. A cantora virou uma das novas caras do Grammy, e ganhou ou foi indicada em todos os últimos anos, mesmo quando nem ela achava que merecia. Eilish disse isso com todas as letras na cerimônia de 2021, quando bateu a rapper Megan Thee Stallion em gravação do ano.
Este ano, sem um novo álbum, ela concorre ao prêmio mesmo assim, também em gravação do ano, com “What Was I Made For?”, da trilha sonora de “Barbie”, o maior sucesso cinematográfico do ano, com direção de Greta Gerwig.
Aliás, o filme, que recebeu oito indicações ao Oscar, parece ter encantado os votantes do Grammy também. A categoria de melhor canção para obra audiovisual, na qual costumam ser nomeadas faixas de diferentes produções, desta vez tem quatro músicas só do longa-metragem da boneca. Sobrou só uma vaga para Rihanna e sua “Lift Me Up”, de “Pantera Negra: Wakanda para Sempre”.
Tudo faria mais sentido se o Grammy se limitasse a reconhecer aquilo que é mais popular na música no período de um ano. Os maiores nomes em termos de números são os blockbusters das gravadoras, e no fim das contas são eles quem acabam faturando os principais prêmios nas cerimônias.
Mas o Grammy ainda busca premiar aquilo que considera melhor e reúne artistas sem tanto apelo popular nas mesmas categorias dos campeões de audiência. Assim, a premiação se encontra numa encruzilhada, onde a falta de coerência e critérios salta aos olhos de maneira mais explícita.
A compreensão dessa miopia em relação ao espírito do tempo passa decisivamente pela música negra. Sem contar as esnobadas históricas em Beyoncé nas categorias principais e a segmentação de prêmios para reconhecer negros em cercadinhos isolados, os esforços nos últimos anos para fabricar astros negros é possivelmente o maior sintoma desse descompasso.
Jon Batiste, que há dois anos ganhou o prêmio de álbum do ano, um dos mais importantes da cerimônia, retorna agora como um dos grandes nomes da premiação. Indicado contra gigantes do pop como Swift e Cyrus em álbum e gravação do ano, ele é um pianista e personalidade da TV que faz uma música bastante ligada ao jazz e à música negra tradicional americana.
Batiste passa longe de ser uma febre de público, não é amado por um séquito de fãs, não traz transformações estéticas a nenhum gênero nem é reconhecido como um inovador pela crítica especializada. Ele só se torna alguém relevante quando o assunto é Grammy.
De muitas maneiras, Batiste sintetiza a visão do Grammy —especialmente sobre a maioria dos artistas negros. Quanto mais caricato e preso no passado ele for, maior a chance de agradar à Academia de Gravação, responsável pelo prêmio.
Como ele, há vários exemplos. Um deles é Samara Joy, voz de um jazz clássico e tecnicamente impecável que venceu Anitta no ano passado. Longe de ter o alcance da brasileira —esta, aliás, mais alinhada aos fenômenos pop que dominam o Grammy—, Joy foi eleita a revelação do ano de 2023, mas poderia ter sido de 1940.
Outro é Victoria Monét, cantora de R&B que este ano, com o álbum “Jaguar II”, foi indicada em sete categorias, incluindo gravação do ano e revelação. Não é à toa que, apesar de jovem, ela também concorra a prêmios de R&B tradicional. Sua sonoridade é suave e ancorada em arranjos mais convencionais e acústicos, ainda que sua música não seja anacrônica como a de Joy.
Para completar, há apenas uma artista de rap, que há anos se tornou o gênero mais popular dos Estados Unidos, foi indicada nas categorias principais. É Ice Spice, que concorre como revelação do ano. O Grammy poderia escolher nomes do estilo que tenham tido sucesso popular, e não faltam trappers com números superlativos no streaming, ou mais experimentais, como vários que são reconhecidos pela crítica, mas no Grammy estão limitados às categorias setorizados.
Quem ganhou destaque foram algumas cantoras de R&B. Além de SZA, que tem chances reais de faturar algum prêmio grande, e de Monét, favorita em revelação, Janelle Monáe é zebra na categoria álbum do ano com o hedonista “The Age of Pleasure”. Há ainda Coco Jones, citada em revelação.
Mesmo quando reconhece o que é pop, a premiação escancara uma incoerência com o próprio histórico. Exemplo disso é Cyrus, que é esnobada desde que saiu da Disney, em 2011, mas subitamente recebeu seis indicações por um disco que não está entre os favoritos da crítica ou dos fãs. Ela só foi reconhecida por causa de “Flowers”, que a levou ao topo da lista de músicas mais tocadas no ano passado do Spotify.
Para se ter ideia, sua “Wrecking Ball”, um dos grandes hits da década passada, não foi mencionada na premiação. “Bangerz”, um dos discos de pop mais aclamados da época, também não foi lembrado na categoria principal. Não houve, ainda, indicação ao elogiado “Plastic Hearts”, de 2020, que a levou com sucesso para o rock.
Nessa mistura confusa do Grammy, algumas categorias setorizadas acabam sendo mais representativas da música contemporânea, ainda que a maioria delas nem apareça na transmissão da cerimônia. Donos de álbuns que colecionaram citações em listas de melhores do ano da imprensa, o mexicano Peso Pluma e a colombiana Karol G concorrem em melhor álbum de música mexicana, no caso dele, e melhor álbum de música urbana, no caso dela.
Mas a maior surpresa do ano é o Boygenius, grupo formado por Julien Baker, Phoebe Bridgers e Lucy Dacus. Ainda que o álbum “The Record” não seja tão rico quanto seus trabalhos como artistas solo, o grupo lotou arenas nos Estados Unidos e chega ao Grammy com seis indicações, incluindo as de álbum e gravação do ano —esta, com “Not Strong Enough”.
Tem sido incomum que uma banda de indie rock concorra em tantas —e nas principais— categorias, mais ainda no caso de um álbum melancólico e introspectivo como o delas. Exemplo é o Paramore, que foi relegado a duas categorias de nicho neste ano, concorrendo a álbum de rock com “This Is Why” e a performance alternativa com o single de mesmo nome.
O Boygenius, no fim das contas, entra como azarão na cerimônia, apesar de servir como reconhecimento ao trabalho que as mulheres têm feito para refrescar a música de guitarras.
Com todas as particularidades da “Grammylândia”, a sensação hoje é de que a premiação serve mais para gerar memes e imagens de famosos bem vestidos interagindo do que reconhecer o que é relevante na música.
Basta lembrar que Beyoncé virou piada, ao ser acusada de se atrasar por causa do trânsito, pelo apresentador Trevor Noah, quando não recebeu em mãos uma estatueta porque ainda não tinha chegado à cerimônia. A internet não perdoou. Os brasileiros, por sua vez, mal prestaram atenção à distribuição de prêmios. Foi a presença de Anitta que dominou as redes por aqui.
O Grammy serve também para garantir bons contratos aos premiados —nos últimos anos, Samara Joy e Jon Batiste, para citar alguns nomes, cantaram em festivais brasileiros, mesmo que fossem quase desconhecidos no país.
Para a comunidade da música —as pessoas que a consomem e debatem ao redor do mundo—, cada vez menos importa saber qual novo recorde Taylor Swift vai bater. No fim das contas, o Grammy parece ficar limitado a expressar as ideias de quem pode saber tudo sobre mercado, mas não necessariamente entende de arte.
Colaborou Guilherme Luis
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Fonte: Uol