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A memória está em cena na peça “Bom Dia, Eternidade”. Do quadro antigo ao rádio que remete aos anos 1950, passando por cadeiras e bibelôs de porcelana, todos os objetos sobre o palco lembram passado e nostalgia.
É como se o público fosse conduzido à casa dos avós, onde móveis e retratos são testemunhas da passagem dos anos. Não por acaso, a velhice é o tema central do espetáculo, que está em cartaz no Sesc Consolação até o dia 25 de fevereiro.
“Esse é um assunto ainda pouco falado na nossa sociedade. Em geral, a gente presta mais atenção na juventude e esquece de abordar outros corpos e narrativas”, diz Luiz Fernando Marques Lubi, diretor do espetáculo.
A obra, porém, não discute a velhice de forma ampla. No lugar disso, coloca em evidência o envelhecimento de pessoas negras, grupo que ainda se vê pouco representado em obras de arte. “Acho que essa invisibilização acontece porque artistas negros têm menos oportunidade de chegar à velhice.”
Segundo o Ifer (Índice Folha de Equilíbrio Racial), a longevidade de negros em relação a brancos piorou entre 2001 e 2021 no Brasil em razão da desigualdade no acesso a planos de saúde privados e à medicina de ponta.
Para o diretor, a obra é uma forma de criar novos imaginários sobre pessoas negras na terceira idade. “Na peça, vemos pessoas mais velhas que conquistaram seu espaço e que encontraram na arte uma forma de expressão.”
“Bom Dia, Eternidade” coloca em cena oito atores, dos quais quatro têm mais de 60 anos. Além de atuar, eles formam uma banda que entoa no palco canções de músicos como Tim Maia, Djavan e Jorge Aragão.
O espetáculo também é entremeado por projeções com depoimentos dos artistas mais velhos. Nos relatos, alguns deles se dizem surpresos por terem chegado à terceira idade.
“Sendo negro, preto e gay, eu tinha um teto de [longevidade] de até 30 anos”, diz um deles. “Eu não tinha sonhos para a minha velhice. Imaginava que, antes dos 40 anos, eu iria embora”, diz o outro.
Lubi afirma que um dos objetivos da peça é justamente mostrar que pessoas negras podem vislumbrar uma vida longeva. “A gente quer que elas sonhem com a velhice e possam se imaginar nela. Daí vem o desejo de ter esses corpos mais velhos em cena na sua potência, tocando e cantando.”
A obra conta a história de quatro irmãos idosos que foram despejados de casa durante a ditadura militar. Após quase 60 anos, o Estado restituiu a propriedade, motivo pelo qual eles se reuniram para decidir o que fazer com o imóvel.
A escolha de situar o despejo durante o regime militar não foi uma decisão irrefletida. Nesse período, o poder público destruiu bairros inteiros, como aconteceu com algumas favelas do Rio de Janeiro.
Quando tentavam resistir, os moradores sofriam represálias. Em 1968, por exemplo, líderes da Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (Fafeg) foram presos e ameaçados após se oporem à remoção de comunidades cariocas.
Lubi diz que dados como esse são importantes porque mostram que a resistência contra a ditadura foi encapada também por pessoas negras e faveladas, algo que costuma escapar à historiografia tradicional. “Fica parecendo que foi uma luta só de universitários e de artistas. Só que existiram vários movimentos de moradia que lutaram contra o regime.”
Os despejos que ocorreram nesse período não só destruíram casas, mas também desarticularam redes de apoio entre os moradores, que perdiam o contato uns com os outros. Além disso, esse processo comprometia tradições e costumes.
“Tudo isso enfraquece a noção de comunidade”, diz Lubi, acrescentando que os atores mais velhos da peça sofreram com despejos quando mais jovens. “Foram movimentos que acabaram separando famílias inteiras.” No palco, vemos os irmãos tentando reconstruir relações e memórias desfeitas depois que foram retirados de casa.
O diretor diz que usou parte da vivência dos atores, borrando os limites entre ficção e realidade. Alguns dos objetos sobre o palco são itens que pertenciam aos pais e avós dos artistas, como quadros e bibelôs.
Além disso, o elenco entrevistou parentes mais velhos para documentar histórias de suas famílias e encená-las no espetáculo. Foi isso o que fez Filipe Celestino, que dá vida a Everaldo.
“Fazer isso é uma forma de resgatar memórias, processo que é sempre muito difícil em comunidades negras, porque me parece que o Estado tenta o tempo todo apagar esses registros”, diz Celestino. “Esse apagamento acontece para que a gente não tenha como olhar um para o outro. É uma ferramenta de desmobilização e de desvalorização das populações negras.”
“Bom Dia, Eternidade” é a última peça da trilogia da morte, iniciativa em que o coletivo artístico O Bonde discute corpos negros no Brasil. O projeto começou com a peça infantil “Quando Eu Morrer, Vou Contar Tudo a Deus”, seguida por “Desfazenda – Me Enterrem Fora Desse Lugar”.
“Queremos refletir sobre como resgatar quem a gente realmente é para além do que nos é imposto”, afirma Celestino, acrescentando que o racismo impõe situações de morte a pessoas negras. “Quando eu digo morte, não é só morte física, mas simbólica também. Ao ler no jornal que uma criança foi morta por um tiro da polícia, a gente morre um pouco também.”
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Fonte: Uol