[ad_1]
O autor francês Han Ryner tinha uma criatividade profética. Duas de suas obras, vindas ao Brasil com mais de um século de atraso, dão testemunho desse seu talento de pitonisa. Uma delas foi pioneira no gênero da ficção científica. Já a outra antecipou a literatura LGBTQIA+.
Em “O Homem-Formiga”, de 1901, Ryner conta a história de um homem que se transforma em inseto —uma década antes de Franz Kafka publicar “A Metamorfose”. Já em “A Menina que Não Fui”, de 1903, narra a vida de um protagonista que, hoje, chamaríamos de transgênero.
Esses dois textos fazem parte do catálogo da editora Ercolano, que estreou no mercado editorial no ano passado com um projeto de arqueologia. A meta é resgatar livros que, por injustiça, nunca entraram para o cânone no Brasil. “O Homem-Formiga”, mais recente deles, saiu em dezembro.
Han Ryner é o pseudônimo de Jacques Élie Henri Ambroise Ner, nascido em 1861 na Argélia —o país era naqueles tempos uma colônia da França. Ficou mais conhecido como anarquista do que como romancista. Defendia o anarcoindividualismo. Segundo essa filosofia, cada pessoa deve viver segundo sua vontade, e não as vontades alheias.
A filosofia de Ryner chegou ao Brasil nos anos 1930 por meio da feminista Maria Lacerda de Moura. Seu “Manual Filosófico do Individualista” foi vertido ao português pelo escritor Roberto das Neves.
A ficção, porém, pode ser mais eloquente do que os tratados. Tanto “O Homem Formiga” quanto “A Menina que Não Fui” exploram o pensamento de Ryner em linguagem literária —sem serem doutrinários.
“O Homem-Formiga” começa com o protagonista, Octave-Marius Péditant, observando um formigueiro. Uma fada aparece e o transforma num inseto da espécie Aphaenogaster barbara. Ele deixa, de certa maneira, de ser um indivíduo e passa a fazer parte de uma sociedade coletiva. Péditant vira ainda assexuado, algo que o incomoda bastante.
O conflito entre indivíduo e coletivo é central a essa narrativa. Outro tema fascinante é a angústia de Péditant diante da impossibilidade de traduzir sua experiência. Ele vive como uma formiga, com acesso a sentidos que os humanos não têm. Enxerga novas cores e aprende a se comunicar com complexos movimentos de antenas. Entende, porém, que a linguagem humana não tem ferramentas para dizer nada disso ao leitor.
Mal consegue se lembrar dos dias de inseto quando, de volta ao corpo de homem, tenta escrever o seu diário. Matuta “elogiarão o poder da minha imaginação, quando deveriam criticar a mediocridade desbotada da minha memória”. Ele se sente isolado e incapaz de dizer o que precisa.
Essa aflição está presente também em “A Menina que Não Fui”, cujo narrador, François Taulane, sofre para expressar seu desejo pelos colegas e sua feminilidade. Cogita então que “a arte de escrever seria apenas a arte de condensar brumas longínquas e fazêlas se passarem por rochas?”.
Taulane estuda num internato em que a maior parte dos meninos têm relações amorosas e sexuais entre si. “Eu era o mais rico e, senão o mais belo, ao menos o mais femininamente bonito”, diz. Assim, é desejado por todos e apelidado de “a mulherzinha”.
Como bem nota o escritor João Silvério Trevisan em seu prefácio, não há em “A Menina que Não Fui” o moralismo típico da literatura naturalista da época. Isso porque o individualismo de Ryner defendia a libertação das normas imposta pela sociedade—entre elas, a heteronormatividade.
Um século depois, os livros de Ryner impressionam por como esses temas são tratados de maneira honesta e às vezes inclusive incômoda. Em especial, violência e sexo se entrelaçam nos romances.
Nem a violência nem o sexo, porém, são gratuitos na ficção de Ryner. Estão a serviço da criatividade e da filosofia de que cada um sabe como deve viver. São, também, redimidos pelo lirismo de um profético autor capaz de enxergar por meio dos olhos de seus personagens e os perdoar.
[ad_2]
Fonte: Uol