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“Fazia muito tempo que ela ignorava o motivo pelo qual acudia à terapia. A cura era impossível, e o alívio do tratamento, cada vez mais frágil.” A poeta Anne Sexton conclui em seguida que suas sessões de psicanálise servem para ocupar “o vazio de uma mulher selvagemente só”.
Sobre seu futuro, não há qualquer esperança. “Não acreditava nem sequer na possibilidade de se estabilizar e não cair mais baixo. Nunca acabava de desmoronar por completo.”
É o retrato dos últimos momentos de uma das escritoras mais vorazes do século 20. Sexton se debateu com distúrbios psíquicos durante quase toda a vida enquanto elaborava, autodidata, uma obra que a tornaria ponta de lança da poesia confessional, derramando intimidades sem pudor e com maestria no papel.
Sua literatura, uma das mais expressivas dos Estados Unidos e já popularizada por diversos idiomas, está disponível agora pela primeira vez aos brasileiros na antologia “Compaixão”, traduzida pela também poeta Bruna Beber.
A estreia tardia de Sexton vem num momento em que proliferam obras de qualidade sobre a relação de escritores com a saúde mental.
A espanhola Rosa Montero acaba de publicar “O Perigo de Estar Lúcida”, um amplo panorama histórico sobre a ligação entre a criatividade e aquilo que chama de loucura, incluindo a si mesma no balaio e dedicando quase 250 páginas a elaborar hipóteses sobre o funcionamento da mente dos artistas.
A autora se ampara em casos reais, como os de Sylvia Plath e Charles Bukowski, e em dados estatísticos. Por exemplo, um estudo da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, que aponta que escritores têm três vezes mais chances de sofrer de depressão e quatro vezes mais probabilidade de ter transtorno bipolar.
Já o sociólogo britânico Andrew Scull lança “Loucura na Civilização”, que se aproxima da questão pelo ângulo quase inverso, refletindo sobre como a arte passou a lidar com a representação da insanidade —no século 19, com a disseminação dos então chamados manicômios, eles passaram a aparecer quase imediatamente nas histórias de terror.
Há ainda autores dedicados a falar em primeira pessoa de seus transtornos mentais. O francês Emmanuel Carrère relata em “Ioga”, com alta voltagem literária, sua derrocada de um retiro espiritual em direção a uma instituição psiquiátrica; em dois títulos autoexplicativos, a britânica Wendy Mitchell e a americana Esmé Wang abordam suas experiências em “O que Eu Gostaria que as Pessoas Soubessem sobre Demência” e “Esquizofrenias Reunidas”, este previsto para sair em abril.
E chegou há pouco por aqui “Fim de Poema”, novela de Juan Tallón que contém o trecho sobre Anne Sexton que abre este texto. Num livro curto e engenhoso, o espanhol se propõe a iluminar, pela via da ficção, a “caixa preta” por trás do suicídio de quatro grandes poetas: além da americana, Alejandra Pizarnik, Cesare Pavese e Gabriel Ferrater.
São escritores separados por longas distâncias geográficas, mas que partilham influências literárias e enorme energia vital. Para usar palavras de Tallón, todos foram acumulando, ao longo de sua vida criativa, a lenha que culminou no incêndio trágico da morte autoinfligida.
“O escritor é alguém que faz um esforço extraordinário para comunicar algo que é, quiçá, incomunicável”, afirma o autor. “Sempre buscam dizer algo de uma maneira nunca dita, desbravando um caminho novo e selvagem enquanto mergulham em si mesmos. E quando se percorre esse caminho escuro, você não sabe se vai chegar a salvo.”
É uma fala que encontra eco na psicanalista Maria Homem, que tem doutorado em teoria literária e literatura comparada. Ela propõe uma inversão didática na lógica com que estamos acostumados a enxergar a saúde mental.
“Somos todos, entre aspas, loucos em um primeiro momento. O que organiza o que chamamos de sanidade é o poder de dar nome às coisas com a palavra e com nosso imaginário simbólico compartilhado. Quando alguém se aprofunda em uma forma própria de dizer o que é estar no mundo, faz parte a perda dessas balizas.”
Ou seja, aqueles que se empenham no projeto de criar algo radicalmente novo —artistas, cientistas, filósofos— precisam desmontar o mundo que conhecem e descobrir tudo do zero. Costuma ser um caminho com doses de dor e perigo, segundo a psicóloga, que aproxima os processos de criação literária e análise psicanalítica.
Assim, não há como separar as condições psiquiátricas de uma autora como Anne Sexton daquilo que ela expressa nos livros. Quem diz é Linda Gray Sexton, herdeira da poeta vencedora do Pulitzer.
“As pessoas perguntavam à minha mãe por que ela escrevia sobre coisas das quais ninguém ousava falar e ela respondia que sua vida era assim, não podia escrever de outra maneira”, diz Sexton, a filha já septuagenária, em entrevista por vídeo.
Quem ler a coletânea de sua mãe verá que assuntos como o arrebatamento romântico, a exploração da sexualidade e a sensibilidade materna aparecem ao lado de sentimentos paranoicos, solidões acachapantes e a inclinação a acabar com a própria vida.
“Ela sentia muito intensamente que era seu trabalho escrever sobre seu interior e, assim, alcançar outras pessoas que tinham enfermidades mentais. Queria ajudá-las.”
É claro que nenhum bom escritor enxerga seu trabalho apenas dessa maneira utilitária, e é uma armadilha ler a obra de Sexton por essa lente tão estrita. Mesmo que a literatura da poeta esteja entranhada a seu sofrimento psíquico, há muitos outros ângulos possíveis de leitura.
O suicida, afinal, não pode ter sua vida inteira eclipsada pela morte. Aqui vale voltar a Rosa Montero, no capítulo de “O Perigo de Estar Lúcida” dedicado a escritores que se mataram, como Ernest Hemingway, Vladimir Maiakóvski, Yukio Mishima e tantos outros nomes estruturantes da literatura contemporânea.
“Tendemos a considerar que toda a existência do falecido foi uma tragédia, como se esse mal final envenenasse tudo, quando não é verdade”, escreve a espanhola. A maioria dos suicidas amaram a vida, gozaram de momentos maravilhosos e, segundo sua hipótese, não querem necessariamente dar cabo de si. “Simplesmente se sentem incapazes de continuar vivendo.”
Linda Gray Sexton, experiente em lidar com novas impressões e traduções da obra de sua mãe desde que passou a ser executora de seus direitos autorais, há 50 anos, está cansada de ver editoras enfocarem seu lado obscuro e ignorarem tantos de seus poemas mais luminosos.
“Eu odeio essas edições do tipo ‘Anne Sexton, a poeta suicida’, que trazem na capa a imagem de uma mulher louca, porque são tão limitadoras. Ela era muito maior do que isso.”
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Fonte: Uol