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“Eu não o matei”, diz a escritora Sandra Voyter, acusada de assassinar o próprio marido. “Essa não é a questão”, responde seu advogado.
Há um mistério sem resposta em “Anatomia de uma Queda”, filme francês que acaba de ser indicado a cinco estatuetas do Oscar, e é um mistério saboroso, com um corpo que cai, sangue escorrendo na neve, uma reconstituição criminal minuciosa.
Você pode até se dedicar a resolver a charada —mas não parece ser essa a opção feita pelo próprio filme, que lança um exercício bem mais interessante aos espectadores.
“Você precisa começar a pensar em como os outros irão percebê-la”, aconselha o homem designado a defender Sandra no tribunal, com plena consciência de que ali não é lugar de procurar a verdade, mas de convencer da verdade.
Nisso, o advogado sabe ter um trunfo. A acusada, interpretada pela alemã Sandra Hüller, é escritora de autoficção, aquele gênero hoje dominante nas livrarias em que os autores transformam a própria vida em literatura, com diferentes graus de ficcionalização.
Quanta ficção haverá na história contada por Sandra Voyter? Ou, para usar um desabafo da juíza que preside aquele espetáculo, “vamos começar um debate literário agora?”. É, parece que sim.
O exercício da autobiografia, essa prática em profusão, é um dos menos objetivos possíveis. Com frequência apagamos, confundimos, distorcemos informações para explicar cada escolha que fazemos e tornar nossa história de vida mais coesa —uma atividade íntima e diária que não demanda a escrita de um livro.
Mas Sandra é especialista nisso. Elaborando romances sobre seu pai, seus amores, o acidente de seu filho, virou uma autora premiada. “Você acha que só dá para escrever a partir da própria experiência?”, pergunta uma jornalista a ela bem nas primeiras palavras do filme.
Seu marido também tinha a mesma profissão —com a diferença de que foi um completo fracassado. Dá para ler “Anatomia de uma Queda” como a tragédia patética de um homem que sucumbe pela incapacidade de criar uma narrativa consistente para sua vida, enquanto sua mulher o fagocita com seu talento afiado.
Um casal disputando guerra de narrativas é algo absolutamente trivial. Ainda assim, é excepcional a única cena em que os dois se confrontam de fato, filmada com crueza memorável por Justine Triet a partir de um áudio tocado em pleno tribunal, que deixa homem e mulher totalmente nus em praça pública apesar de ninguém ver nada.
Mas Samuel, antes um cadáver criativo, vira um defunto de fato. Numa outra cena fundamental, um psicanalista atua como espécie de avatar do marido, com procuração para defender seus sentimentos diante da corte. A ré se exalta. “Se eu tivesse consultado um terapeuta, ele poderia estar aqui e falar coisas bem feias sobre Samuel. Mas essas coisas seriam verdade?”
Como fica claro, todo mundo tem só uma parte da verdade; e todo mundo tem sua verdade inteira.
A performance de Sandra —Voyter, a personagem, e Hüller, a atriz— apresenta ao público uma mulher real criando autoficção ao longo de 150 minutos. É a anatomia de um casal, com vida e morte em comum, sendo escrita, corrigida, aperfeiçoada diante dos nossos olhos para convencer que aquele ponto de vista é coerente, plausível. E inocente.
Já com o filme avançado, uma terceira pessoa, ficcionista de enorme potencial, se dá conta da influência que poderia ter ao elaborar uma boa narrativa quando fosse sua vez de tomar o palco —e o faz, no que rende a cena de maior impacto audiovisual do filme justamente pelo descompasso desconcertante entre áudio e vídeo.
Em nada disso há qualquer acusação de maquiavelismo contra esses personagens: todos nós fazemos isso o tempo todo. Talvez você tenha criado argumentos narrativos hoje mesmo na sua cabeça, para justificar por que se atrasou para uma reunião; deixou de pagar uma conta; traiu seu cônjuge (mas foi só uma vez).
A única diferença é que o pepino na mão de Sandra é maior. E culpada ou não, ela é melhor nisso do que a gente.
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Fonte: Uol