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Há dois tipos extremos de escritores de ficção. De um lado, temos aqueles que investem cada sentença de ambiguidades e alegorias, de modo que o leitor se vê desde a primeira linha envolto em uma aventura incerta, que faz lembrar a leitura não de romances, mas de poesia. De outro lado, há os autores que se esquivam brutalmente do lirismo, das imagens enigmáticas, das metáforas em suas formas mais autoevidentes.
Jamaica Kincaid é uma mestra do segundo grupo, cujo ofício nada tem de mais simples ou fácil em relação ao do primeiro. Ao contrário: esse tipo de escrita exige controle, coragem e um compromisso com a linguagem que demanda a aposta na capacidade dela de dizer muito com pouco —ou, ainda, de dizer o extraordinário e o ilógico por meio do banal, do óbvio e, sobretudo, do objetivo.
Sem a consciência clara da instabilidade de sentidos, o leitor, nesses casos, se vê de repente no chão sem entender muito bem o que foi que o derrubou.
É com essa técnica que Kincaid constrói a passagem da infância para a adolescência de Annie John, protagonista que dá título ao seu romance de estreia, lançado em 1985. O livro chega agora ao Brasil, na boa tradução de Carolina Cândido, e é leitura incontornável para os afortunados que já tiveram em mãos a obra-prima da autora, “A Autobiografia da Minha Mãe”, romance de 1996 lançado por aqui há poucos anos.
O cenário é o da então colônia britânica de Antígua, com sua educação europeia formal se misturando às tradições locais, o que desvela tensões e violências passadas e presentes.
Na ilha caribenha, poucas décadas antes da independência em 1981, Annie John enfrenta com perplexidade as mudanças em seu corpo, nas relações com suas amigas, na posição diante das autoridades e, sobretudo, na cumplicidade com sua mãe, que se transforma em confronto e alheamento.
Até pouco antes dos 12 anos da protagonista, a mãe era a imagem da beleza —”Sua cabeça deveria estar em uma moeda de seis pence”— e da segurança —”Era em um paraíso como esse que eu vivia”.
Com a puberdade, as duas se descolam, e o que lemos dali em diante é o relato dolorido de como se enfrenta a ambivalência desse momento crucial, em que é preciso destruir o antigo para construir o novo.
Temos lido muitas narrativas a respeito da relação entre mães e filhas. Mesmo em meio a essa profusão de literatura, “Annie John” é muito bem-vinda. Seu mérito é justamente o de tomar o ponto de vista da adolescente, que observa com dureza e sem concessões a sua própria condição e a dos que a cercam, sem contemporizar suas experiências nem dar a elas significados que só podem ser conquistados à custa da perda da intensidade presente.
Ao tocar um baú pertencente a sua mãe, Annie diz: “Naquele momento, senti mais saudades da minha mãe do que imaginei ser possível […], mas também naquele momento eu só queria vê-la morta, toda murcha e em um caixão aos meus pés”.
“Annie John” é uma miríade de vertigens: dos afetos ambivalentes pela mãe à descoberta do poder da mentira; do desprezo às colegas “burras” e “bobas” à fascinação edipiana pelo modo como a mãe faz seu pai rir; da doçura do primeiro amor compartilhado com uma colega à combinação de beliscões, lágrimas e beijos que a faz se enamorar por uma menina ruiva e rebelde, “com um cheiro tão inacreditável e maravilhoso, como se nunca tivesse tomado banho na vida”.
A adolescente Annie conquista por sua honestidade intransigente e suas paixões violentas —mesmo aquelas que duram pouca mais que uma semana. Com ela, vislumbramos, lembramos e revivemos o que é essa passagem da vida em que sentimos a cada dia “como se uma nova pele tivesse crescido sobre a antiga, e a nova pele fosse formada por um conjunto completamente diferente de terminações nervosas”.
Não é certamente uma experiência confortável, mas Annie talvez dissesse que o conforto é uma sensação superestimada.
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Fonte: Uol