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Não há paz em “O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho”, adaptação da diretora Bia Lessa do maior livro de Guimarães Rosa, “Grande Sertão: Veredas”, exibida na noite de domingo (21) na 27ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes.
Acompanhado pela Cine-Tenda —o principal espaço de exibição— lotada, o filme de pouco mais de duas horas foi aplaudido ao final.
Perto do desfecho de “O Diabo na Rua”, ao saber que seu inimigo Hermógenes, vivido por José Maria Rodrigues, está próximo, o jagunço Riobaldo, interpretado por Caio Blat, fala: “Mesmo com a minha vontade toda de paz e descanso, eu estava trazido ali, no extrato, no meio daquele despropósito, desgoverno. Eu, senhor de certeza nenhuma. O que é isso que a desordem da vida pode sempre mais do que a gente?”
“Guimarães Rosa é porrada”, disse a diretora em evento nesta segunda (22) sobre seu filme, que coleciona cenas potentes, com diversas gradações de violência e tensão.
Ela cita o crítico literário e romancista Silviano Santiago, que colaborou numa espécie de consultoria. “Como diz Silviano, ‘Grande Sertão’ é indomesticável”, afirma Lessa, que enfatiza a atualidade da obra de Rosa. “Vivemos um momento indomesticável, com a violência, o reacionarismo, a dificuldade de saber o que significa ser humano. E ‘Grande Sertão’ é uma obra que estabelece outros valores para a humanidade, é uma obra norteadora.”
Reconhecida pelo trânsito constante entre teatro, cinema, artes visuais e literatura, Lessa dirigiu shows de Maria Bethânia e esteve à frente de peças como “Ensaio nº 3” (1986), prêmio Molière de direção, “Orlando” (1989), com Fernanda Torres, “As Três Irmãs” (1999), com Renata Sorrah, e “Pi – Panorâmica insana” (2018). No cinema, lançou longas como “Crede-mi” (1996) e “Então Morri” (2016), ambos codirigidos por Dany Roland.
Seu envolvimento com Guimarães Rosa está permeado por essa miscelânea de linguagens. Em 2006, concebeu uma mostra sobre “Grande Sertão – Veredas” para o Museu da Língua Portuguesa. “Sugeri ao museu fazer essa exposição antes mesmo de ler o livro. Quando li, me dei conta que estava perdida”, contou em tom bem-humorado.
Entusiasmou-se, no entanto, com o desafio de transpor a história para o teatro, feito que conseguiu em 2017. “Depois de ver a peça, uma antropóloga me falou: ‘Você não faz o ‘Sertão’, você o invoca”, lembra Lessa. A ideia contida nesse comentário, que distancia o trabalho de uma adaptação rigorosa, fica ainda mais evidente no longa-metragem, que foi filmado em 2018. “Não queríamos lidar com o texto como um patrão”, diz ela.
Lessa escapou do caminho mais óbvio, que seria levar Caio Blat, Luiza Lemmertz (Diadorim) e os outros oito atores para o sertão que compreende parte do norte de Minas Gerais e do sul da Bahia, que, em alguma medida, inspirou Guimarães Rosa. Realizou as filmagens em um estúdio em São Paulo, com o chão e as paredes completamente pretas.
Há pouquíssimos elementos cenográficos, é o próprio elenco quem cria as diferentes ambientações. São os atores que dão vida aos bois e aos pássaros que, volta e meia, estão ao lado dos jagunços. São eles ainda os peixes que cobrem o rio São Francisco numa das melhores composições visuais do longa.
A comparação com “Dogville” parece inevitável. No longa lançado pelo dinamarquês Lars von Trier em 2003, os atores conduziam a trama sobre uma espécie de mapa que esboçava os contornos da cidade. Em “O Diabo na Rua”, os elementos de apoio aos atores são ainda mais escassos, o que exige deles presença maior e interpretações mais intensas.
“Tudo era muito ensaiado para que o inconsciente pudesse se manifestar na hora das filmagens”, lembra Leonardo Miggiorin, que interpreta Zé Bebelo, líder de um dos bandos.
“O filme renuncia ao cinema épico. A grande tecnologia é o corpo”, disse o crítico Daniel Schenker durante debate sobre o longa nesta segunda (22). A expressão corporal, além do domínio pleno dos diálogos, é especialmente forte no caso de Caio Blat —talvez esse seja seu melhor trabalho no cinema.
Além disso, o filme se afasta da armadilha do chamado teatro filmado. “Para o cinema, nós criamos novos espaços, com a grua [sistema de guindaste onde a câmera é instalada em uma extremidade e costuma ser posicionada a alguns metros do chão], com a lente que se aproxima e se afasta dos atores”, afirma Lessa. “Além disso, o amor de Riobaldo por Diadorim é muito mais enfatizado no filme do que era na peça.”
“O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho” deve entrar em cartaz nos cinemas ainda neste semestre. Em maio, aliás, estreia outra adaptação desse clássico para o cinema, essa sob a direção de Guel Arraes. Curiosamente, Riobaldo também está a cargo de Blat. Diadorim, por sua vez, é vivida por Luisa Arraes.
Cada um a seu modo, Bia Lessa e Guel Arraes querem mostrar, no dizer de Rosa, como “o correr da vida embrulha tudo”.
O jornalista Naief Haddad viajou a convite da Mostra de Cinema de Tiradentes
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Fonte: Uol