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Eu tinha 10 anos quando meus pais foram requisitados a comparecerem a uma reunião com a minha professora e uma das coordenadoras da minha escola. O encontro fazia parte de um recém-inaugurado processo que visava oferecer aos pais uma visão qualitativa periódica do desempenho de seus filhos na escola, vinda diretamente da boca de quem lidava com eles, de quem via ao vivo o que acontecia naquelas preciosas horas em que as crianças estavam sob domínio de outra jurisprudência que não a deles próprios.
Minha mãe estava lá no dia e hora marcados. Segundo relatos posteriores aliados a algumas contribuições da minha imaginação para efeito dramático, a conversa se deu mais ou menos assim:
— Pais de Joanna Moura?
Disse a coordenadora abrindo a porta de sua sala enquanto olhava para a fila de quatro ou cinco pais que havia se formado do lado de fora, cada um aguardando impacientemente seu momento de ser chamado.
— Boa tarde!
Respondeu minha mãe levantando-se do banco onde havia se sentado e adentrando a sala.
— Bem-vinda. Pode se sentar. Meu nome é Fulana (insira aqui o nome de coordenadora que mais combine com o seu imaginário escolar). Vamos falar de Joanna? Joanna é uma menina muito bonita. Já pensaram em encorajá-la a ser modelo? Fazer comerciais?
Consternada diante das perguntas, minha mãe não hesitou em responder em tom claro de reprovação (e aqui me obrigo a reproduzir ipsis litteris o que, segundo ela, foi dito):
— Me desculpe, dona Fulana, mas eu não vim aqui ouvir que a minha filha é bonita. Sua aparência física não deveria ser relevante para a escola. Gostaria de saber se ela é uma boa aluna, se é atenta, se participa em sala de aula.
A coordenadora supostamente não conseguiu conter seu constrangimento e desembestou a gaguejar enquanto me tecia elogios que certamente eu não merecia, ou pelo menos não na intensidade à qual a situação a obrigou a recorrer.
Eu recebi o relato do ocorrido em primeira mão, naquele mesmo dia, no carro a caminho de casa. Do banco de trás, conseguia ver apenas os olhos de minha mãe refletidos no retrovisor, enquanto ouvia sua consternação alcançar meus ouvidos.
— Que absurdo! Uma educadora mencionar a beleza de uma aluna numa reunião de pais.
Na época, não dei a menor atenção. Aquela revolta toda me parecia absolutamente descabida. Afinal, qual o problema em ganhar um elogio? Mas o tempo passou, a menina de 10 anos cresceu e não demorou muito para que a resposta se tornasse cristalina. É que os elogios continuaram chegando. Na rua, na sala de aula, na entrevista de trabalho, na corrida de táxi, na reunião com clientes. Nos lugares mais despropositados, nos momentos mais inoportunos.
Antes que me atirem pedras, esse não se trata de um daqueles desabafos a respeito de um suposto “preconceito-contra-pessoas-bonitas”, ou, para ser mais precisa, contra pessoas consideradas bonitas pelo padrão de beleza que nos é imposto socialmente. Guardem, portanto, os cartazes de “pobre menina padrão” para outro momento.
Tendo a acreditar que a beleza abre mais portas do que fecha (se é que fecha). Ser considerada bonita é dessas coisas que praticamente não tem contra indicação. Afinal, sabemos muito bem que não há nível de beleza que proteja mulher nenhuma de nada. Corremos os mesmos riscos sendo altas ou baixas, gordas ou magras, loiras ou morenas. E mesmo se estivermos cobertas da cabeça aos pés ainda nos sentiremos e estaremos ameaçadas.
Mas esse texto não é sobre as vantagens ou desvantagens de ser bonita, e sim sobre como o assunto beleza, quando se trata do gênero feminino, tem essa mania tão curiosa quanto desagradável de aparecer onde não cabe, onde não foi chamado, onde não deveria ter relevância alguma. E mesmo que algumas vezes ele abra uma porta, ele também pode servir para diminuir, para constranger e finalmente para nos colocar no lugar de objetos a serem observados em vez de seres pensantes a serem ouvidos.
Há de se ressaltar que não sinto que foi essa a intenção de dona Fulana em sua conversa com minha mãe. A de me reduzir a um vaso de flores. Por certo, o mundo em que vivemos, que joga tanta importância na casca de uma mulher, a fez apenas tecer-me um elogio na hora errada. Mas parte de mim hoje, finalmente, compartilha da revolta que um dia pareceu tão descabida.
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Fonte: Uol