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Com Andrea Beltrão, o espetáculo é sempre agora. Terminado um ensaio da peça “Lady Tempestade”, que estreia nesta quinta-feira, no Teatro Poeira, em Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro, ela é rodeada por dezenas de jovens. Eles nem precisavam dizer que estudavam artes cênicas. Essa é uma gente que se identifica de longe. Desse pessoal descolado, emanava um certo deslumbramento. Afinal de contas, naquela noite, todos aprenderam que a exuberância de uma atriz não se encerra em cena.
Andrea tem 60 anos de praia e quatro décadas de tablado. Ela é sincerona e não para quieta. Tem a pele dourada, a forma esguia e as pontas espevitadas de seus cabelos são próprias de quem lê três jornais todos os dias. Sua rotina se divide entre o cinema, a próxima novela das seis —a última trabalhando como funcionária da TV Globo, ela diz à Folha— e o teatro político. Andrea é um mulherão.
“Foram 43 anos de uma puta relação maravilhosa e linda com a Globo. É assim que está acontecendo com todo mundo, a contratação por obra, não é uma coisa pessoal comigo e nem poderia ser”, diz, bebericando um café. “Agora eu vou encenar um dos temas da minha vida.”
Com texto de Silvia Gomez e direção de Yara de Novaes, “Lady Tempestade” conta a história da advogada pernambucana Mércia Albuquerque, defensora de 500 presos políticos da ditadura militar. A peça examina as páginas de seu diário, recém publicado pela editora Potiguariana sob o título de “Diários de Mércia Albuquerque: 1973-1974″. O nome da peça faz referência a uma frase de Mércia —”minha mãe é bonança, eu, não, sou tempestade”.
Em 2024, completam-se seis décadas do golpe civil-militar. Mas não é a data que torna o tema da peça importante, diz Andrea. Ela lembra que, há quase um ano, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, do PL, invadiram a sede dos três poderes, em Brasília, num ato golpista. Sob Bolsonaro, o Ministério da Defesa comemorou, por quatro anos seguidos, o dia 31 de março, a data do golpe. “A gente não caminhou no Brasil, e isso passa pela ausência de reparação”, ela afirma. “Não fomos ao tribunal e não punimos quem matou e quem torturou.”
Em outros países, o autoritarismo não foi tolerado. Na Argentina, por exemplo, 200 militares e civis foram condenados por envolvimento em prisões e torturas, entre 1976 e 1983. No Brasil, a Lei da Anistia, sancionada em 1979 pelo então presidente João Batista Figueiredo, concedeu perdão a todos que cometeram crimes durante a ditadura. A caixa-preta só foi aberta pela Comissão Nacional da Verdade, realizada no governo Dilma, que identificou 434 casos de mortes e desaparecimentos, no período entre 1946 e 1988.
Na visão de Andrea, a Anistia foi necessária à redemocratização, mas as estruturas autoritárias do regime militar ainda persistem. “Eu moro em Copacabana”, ela diz e logo emudece. Para um carioca, a informação diz muito. Na babel onde moram jornalistas, proxenetas e banqueiros, a atriz viu muitas pessoas erguerem, nos últimos anos, cartazes pedindo a volta do regime. “Muitas pessoas pediram o fechamento do Congresso, embaladas por um discurso de liberdade de expressão. Então, a ditadura não é uma questão resolvida.”
Pelo contrário, a atriz vê o cotidiano de violência nas metrópoles brasileiras como uma herança autoritária. “No Brasil, pretos morrem porque são pretos, mulheres morrem porque são mulheres e travestis morrem porque são travestis. Estamos num lugar ainda muito atrasado. Tem uma coisa que é estrutural. Não interessa aos poderosos mudar a estrutura.”
Diante dos recentes arroubos autoritários, a artista demonstra alívio com Lula, do PT, na Presidência. Questionada se havia se decepcionado com o primeiro ano de Margareth Menezes como ministra da Cultura, a atriz responde que ainda é cedo para avaliar a gestão.
“Eu estou esperando. Estou com muita paciência. A cultura do país estava nas mãos de André Porciúncula e Mário Frias, que faziam fuzil com a mão”, ela afirma. “Acho Margareth uma puta artista, que também é empreendedora. Acho que está num caminho legal.”
Em “Lady Tempestade”, Andrea é apenas A., alter-ego, que recebe o diário de Mércia e dá vida às histórias que lê. O teatro é mesmo gentil com os fantasmas, como diz o texto de Gomez. Há um entrelaçamento entre as vidas de A. e Mércia, na medida que a atriz encarna a advogada e tantos outros vultos da ditadura, registrados no diário. Em cena, Andrea só tem a companhia do filho mais velho, Francisco —ou F.—, de 28 anos, que faz a sonoplastia.
No espaço vazio do Poeira, há a sugestão de uma sala de estar. O cenário se resume a um sofá azul claro, uma mesa, onde F. se senta, um cachorro de plástico e um microfone, encaixado em seu pedestal. Ali, A. lê algumas passagens do diário, que se divide entre relato factual e poesia. Os episódios narrados na peça impressionam, tanto mais a biografia de Mércia, que foi presa 12 vezes pelos “gafanhotos”, como ela chamava os militares.
Formada em 1961, Mércia tem a trajetória toda condicionada pela luta política. A peça rememora o caso de Gregório de Bezerra, um dos primeiros assumidos por Mércia e que teve repercussão internacional. Líder comunista, Bezerra foi preso e torturado, tendo sido arrastado, por um carro, no bairro Casa Forte, na capital pernambucana.
Mércia atuou ainda no caso de José Carlos Novaes da Mata Machado, também lembrado na peça. O militante da esquerda católica foi morto sob a tortura dos militares. Na época, a versão oficial informou que Machado morrera num tiroteio, episódio falacioso que se tornou conhecido como Teatro do Caxangá. Em seu trabalho, a defensora negociava a revogação de prisões preventivas, garantia mantimentos aos presos e tentava absolvições.
Decerto, Mércia não se contentou em ser uma advogada. O texto de Gómez dimensiona o trabalho da defensora como uma ajuda humanitária. Na peça, ela está sempre consolando a mãe de um militante assassinado ou inventando a alguma criança um motivo para o sumiço de seu pai. Mércia morreu em 2003, vítima de uma parada cardíaca.
Seu acervo, formado por centenas de cartas, documentos e o próprio diário, foi doado para o Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, do Rio Grande do Norte. Com a peça, Andrea deseja dar uma contribuição à memória da ditadura militar. E acreditar no poder do teatro significa, em última instância, crer em seu país.
“Eu amo o Brasil. Não tenho nenhuma vontade de sair daqui. Detesto o raciocínio ‘ai, aqui é uma derrota, ai, eu vou para a Europa porque a educação daqui é ruim’. Tenho orgulho de morar aqui. Gosto dessa gente misturada, desse caos e dessa zona”, diz ela.
Em sua trajetória, ter fundado o Poeira, em 2005, com recursos seus e de sua amiga, a atriz Marieta Severo, talvez tenha sido a maior aposta no teatro e no Brasil. Mas nunca foi tão difícil manter o espaço. Em agosto, o diretor Aderbal Freire-Filho, marido de Marieta, que ali encenou, nos anos 2000, “Moby Dick” e “O Púcaro Búlgaro”, morreu, vítima de um acidente vascular cerebral. “Não sei te explicar o tamanho do buraco que fica sem ele. Muitas vezes eu penso ‘ah, se o Aderbal estivesse aqui’. Socorro, tenho as lições dele na ponta da língua”, diz a artista.
Passava das oito da noite quando o ensaio terminou. Na estrutura intimista do Poeira, Andrea iniciou um debate sobre a peça. Era a tal criação de uma memória. Nenhum dos estudantes presentes viveu os anos de chumbo. Em seguida, todos eles caíram dentro da noite de Botafogo, não sem antes passarem pelo jardim, de onde pulula o nome “ADERBAL”, assim, em letras garrafais. As cinzas do diretor estão ali.
Somente Andrea e Yara ficaram na sala. Yara não vê incerteza no futuro do teatro brasileiro, com as mortes de Aderbal e Zé Celso, no ano passado, e de Antunes Filho, em 2019. “A premência hoje no teatro não é da linguagem, mas do poder de comunicação. E essa comunicação é feita por agentes que circulam por diversos meios”, afirma a diretora. A própria Andrea vai começar os estudos para voltar a uma novela das seis depois de 25 anos.
Escrita por Mário Teixeira, “No Rancho Fundo” estreia em abril como uma adaptação da peça “Capital Federal”, de Artur Azevedo. Na trama, Andrea interpreta o papel de uma roceira. Na Globo, a atriz esteve nas novelas “Rainha da Sucata”, “Pedra Sobre Pedra” e “Mulheres de Areia”. Atuou em “A Grande Família” e conquistou o país interpretando a Sueli, em “Tapas & Beijos”. Ela quer levar o seriado para as salas de cinema.
“Sei lá por que isso ainda não saiu do papel. Estou botando uma pilha em todo mundo, porque eu gostaria muito”, diz. Em quatro décadas, sua carreira conjugou a natureza comercial da TV à vida intelectual. A recém-publicação do texto de “Antígona: Ela Está Entre Nós”, resultado de seu monólogo inspirado na tragédia de Sófocles, simboliza o sucesso mesmo longe das câmeras. Ela afirma, no entanto, que sua ida para a televisão não foi uma concessão artística, com o objetivo de ter uma vida mais estável.
Tanto que, para fazer parte da “Armação Ilimitada”, em 1985, ela precisou “estar voando”. A atriz conta que aprendeu muito com as novelas e as minisséries, o que gera prazer até hoje. “A televisão me pagou as contas. Eu ajudei a fundar um teatro sem um centavo de lei de incentivo”, afirma. “Não há concessão. A televisão pagou a minha vida.”
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Fonte: Uol