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Demorei a vida toda para me descobrir ateu.
Sou filho de mãe católica, fiz primeira comunhão aos 9 anos e, aos 10, já havia perdido totalmente a fé que a professora de catecismo me empurrara cabeça adentro.
Guardava, entretanto, o medo. Católicos são viciados em medo e culpa, difícil fazer esse detox.
Medo de ir para o inferno quando morresse. Medo de alguma presença espiritual a me espreitar à noite, depois de adormecer.
Curiosamente, o medo evaporou numa viagem a Roma.
Lá, fui apresentado à opulência da Santa Sé e a algumas dezenas de relíquias. A cabeça de São João Batista. Os pregos que pregaram Jesus Cristo.
Nenhum humano moderno, com discernimento e algum estudo, deveria levar a sério tais objetos. Só em Portugal, há oito igrejas expondo fragmentos da cruz que deu origem à coisa toda.
Já o Prepúcio Sagrado –prepúcio com pê maiúsculo, pois Seu Prepúcio– teria desaparecido após o saque de Roma de 1527. Vários supostos prepúcios pipocaram pela Europa desde então, mas nenhum merecedor do selo de autenticidade do Vaticano.
Enfim, basta de prepúcio. Vim para dizer que ateus também festejam o Natal. Todo ano, na virada do 25 de dezembro, entrego presentes para as crianças, como mais do que deveria e tomo um sal de fruta antes de dormir.
“Ain, quanta hipocrisia!” Pode até ser, mas não fui eu que inventei a hipocrisia natalina.
Ninguém pensa no nascimento do Cristo quando abre mais uma garrafa de espumante para beber até entorpecer os sentidos e tolerar a presença de parentes com quem não fala no restante do ano –por motivos que ficam evidentes na ceia de Natal.
Nenhuma imagem da manjedoura passa pela cabeça de quem fatia o peru, espeta o lombo, reclama da uva passa no arroz, mastiga de boca aberta e cospe farofa na tia enquanto fala mal do primo gay que sequer se deu o trabalho de telefonar.
Pensamentos pouco cristãos ocupam a mente de quem pragueja na fila do estacionamento do shopping, estoura o limite do cartão por mera obrigação social, presenteia crianças na tentativa de compensar a própria ausência nos outros 364 dias.
O Natal, diga-se de passagem, nem é uma festa cristã puro-sangue. Eu não me refiro ao consumismo frenético do fim de ano, mas às origens da tradição.
Papai Noel, presunto tender, cantigas natalinas e até a data da celebração têm raízes no paganismo germânico e seus rituais do solstício de inverno –a noite mais longa, o começo da época mais difícil, quando convém apelar ao sobrenatural para sobreviver.
O cristianismo adaptou essa simbologia e inseriu o menino Jesus como personificação da esperança no futuro. Jogada de gênio, irretocável.
O Natal é um chamado para renovar, todo ano e mesmo que a contragosto, o compromisso de coesão da tribo. Somos tão primitivos quanto os lapões da Idade do Bronze, não nos deixemos enganar pelo encanto tecnológico da air fryer e do copo Stanley.
Não preciso acreditar em Jesus para atender ao chamado. Nem você. Parafraseando Jack Palance, acredite se quiser.
Feliz Natal para todo mundo. Volto no ano que vem.
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Fonte: Folha de São Paulo