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Carla Madeira é hoje a pessoa que mais vende livros de ficção no Brasil. Foram excepcionais 155 mil exemplares comercializados em 2023.
Segundo a Nielsen, que tabula esses dados, sua estreia “Tudo É Rio”, de 2014, foi o romance nacional que mais voou das prateleiras neste ano —a publicitária se tornou ainda a única brasileira a figurar no ranking geral dos dez autores mais vendidos do ano.
A mineira de 59 anos cresceu num boca a boca discreto e consistente: “Tudo É Rio” já era um acontecimento ao estilo come-quieto entre os vorazes clubes de leitura, até que chamou a atenção da gigante Record —que, em 2021, contratou a obra da escritora e ampliou seu alcance para todo o país.
Pela editora, ela relançou seu segundo livro, “A Natureza da Mordida”, e publicou o inédito “Véspera” no ano passado. Suas histórias cativam com personagens destroçadas por violências brutais e traumas familiares, sempre tecidas com um forte lirismo que dá de ombros para qualquer tabu.
Nesta entrevista feita por telefone, Madeira discute a relação entre leitores, leitoras e o mercado editorial, se posiciona diante da lista de autoria totalmente feminina cobrada pela Universidade de São Paulo e diz que a estrutura em que homens decidiam o que era literatura boa está desmoronando.
Qual é a diferença de escrever como a autora mais vendida do Brasil? No que está trabalhando agora?
Estou escrevendo um quarto romance, bastante fisgada pela história, mas estou num processo um pouco diferente. Perdi uma sócia, né? Então tive que me reorganizar. [Simone Moreira, parceira da autora na agência de publicidade mineira Lápis Raro, morreu em fevereiro de um câncer de pâncreas.]
Estou com uma rotina de trabalho mais pesada. Nos outros livros, eu escrevia praticamente todo dia e agora não tenho conseguido. É uma diferença mais desse momento do que em função dessa resposta toda aos livros.
Sente uma expectativa, uma pressão diferente sobre sua obra depois do sucesso?
Sinceramente, não. Não sinto esse peso. “Tudo É Rio” já foi um livro que, desde o início, foi sempre numa crescente. Na minha primeira editora, Quixote-Do, a gente chegou a fazer seis impressões. Quando fui escrever o segundo, achava que eu poderia ficar afetada e não senti isso.
Preservar esse espaço de criação tem sido um cuidado, de manter a minha adesão ao que estou fazendo e não pensar muito no que vai resultar, se as pessoas vão gostar ou não, e partir para minhas experimentações.
Seu leitorado é, em maioria, composto por mulheres. Você enxerga isso como uma qualidade, por falar muito diretamente a uma parcela majoritária dos leitores, ou como um defeito, por se sentir circunscrita a um determinado público?
Os clubes de leitura, que são muito impulsionadores da minha obra, são predominantemente compostos de mulheres. No Brasil, elas leem mais que os homens. É ótimo, mas agora eu tenho sentido muitos homens chegando, por contatos nas redes sociais, e tem sido muito interessante.
Na pandemia, quando teve um crescimento grande de leitores de maneira geral, senti que havia essa predominância feminina, agora já não é tanto assim. Tem tido muito feedback de homens professores, advogados, juízes, da psicanálise. Eu escrevo uma história que vai interessar a quem se interessar, não penso muito no público.
Uma pesquisa recente mostrou que as mulheres são 57% das pessoas que consomem livros. Mas o controle das editoras ainda é muito masculino. Acha que é necessário que esse seja um espaço mais ocupado por mulheres?
Isso está em todos os lugares, a mulher está ocupando lugares que sempre foram de predominância masculina. Essa tomada de consciência inclui pensar questões que sempre envolveram o universo feminino e afetavam profundamente o trabalho.
Durante muito tempo era aquela coisa de a mulher ter que cuidar da casa e dos filhos. Questionar isso cria condições para que participemos de tudo sem estar sobrecarregadas, para que a questão de gênero esteja equacionada, ou seja, todo mundo fazer o que sempre havia sido delegado para as mulheres.
Nas editoras tenho sentido um desejo muito grande de fazer parte dessa tomada de consciência. Além de ter muitas mulheres escrevendo e publicando, também há o desejo de incluir profissionais no nível decisório com essa visão e sensibilidade.
Isso passa por mudanças legislativas também.
Basta ver a licença-paternidade, que está sendo discutida agora. Essa mudança de consciência precisa preparar condições para que não vire uma jornada tripla para as mulheres.
Temos visto muitas iniciativas para ampliar a visibilidade das escritoras. Que fatores colaboraram para as mulheres serem escanteadas por tanto tempo do cânone literário?
Isso não é relativo só ao universo literário, mas a todas as frentes de produção a muitos lugares fundamentais. Basta ver a discussão sobre o Supremo Tribunal Federal ter mais representatividade de mulheres.
A literatura é voz, e todas essas decisões eram entregues ao homem como de direito. Quem diz que uma coisa é boa? Quem bate o martelo e diz que uma literatura é de alto nível? Isso estava muito na mão dos homens, e essa estrutura vai se desmontando.
Além disso, muitas mulheres precisaram adiar projetos na vida profissional para ter filhos. Se você tem que trabalhar, dar conta da casa, dar conta dos filhos, que horas você escreve?
Quando eu voltei a escrever, meu filho mais novo tinha dez anos e ainda exigia uma presença. Eu trabalhava o dia inteiro, chegava em casa e queria ficar com ele. Minha rotina era escrever depois que os meninos já estavam na cama. Muitas escritoras passam por isso.
Pensando em como desmontar essa estrutura, acha que a crítica literária tem que levar em conta que a pessoa pertence a um determinado gênero ao avaliar a obra literária?
Não acho. Se vai fazer a avaliação, ela é literária.
Pergunto porque, se o fato de os críticos serem homens produziu essas distorções no cânone, como corrigir isso sem levar em conta o gênero de quem está escrevendo?
Você põe mais mulheres julgando, decidindo. Eu me faço muitas perguntas sobre isso, porque fica sempre num lugar assim: o homem escreve literatura universal e a mulher faz literatura para mulher. Isso me incomoda, sabe?
As questões universais refletem uma dinâmica vivida por homens e mulheres, que incluem os dois gêneros. Precisa ter mulher porque ela pode ter outro pensamento, é outra maneira de ver. Ela pode inclusive julgar pior um livro de mulher e melhor um livro de homem.
Eu não sei nem se seria feita uma entrevista com um homem com esse tipo de pergunta. É uma coisa que a gente precisa superar. Tudo bem, estamos rompendo as coisas, mas eu fico sonhando com a hora em que a gente não precise mais se preocupar com isso.
O que você achou da notícia sobre a Fuvest passar a cobrar só leituras de livros de autoria feminina?
Quantos anos já teve com literaturas feitas só por homens? Você sabe?
Houve muitos, a USP nunca tinha incluído mais de duas mulheres em uma lista de livros obrigatórios.
Então eu acho que não tem nem que dar papo para polêmica. Já teve ano em que só tinha homem. Agora tem um ano em que só tem mulher. É isso aí.
[Depois da entrevista, tarde da noite, Madeira enviou uma mensagem ao repórter para complementar a resposta: “Minha primeira reação foi: já houve tantas listas só de autores homens, por que vira polêmica uma lista só de autoras mulheres? Mas parece contraditório: se queremos diversidade, o ideal é que tenhamos diversidade, e uma lista com uma coisa só vai contra aquilo por que temos lutado. Só que é simbólico, neste momento, e funciona como um risco no chão pra dizer: daqui para a frente, nós mulheres faremos parte disso de um jeito expressivo, e não só para constar.”]
Naquela mesma pesquisa citada mais cedo, a maior parte das pessoas que não compram livros responderam que a questão envolvia o preço, que achavam o livro muito caro. Ao mesmo tempo, o mercado editorial diz que o custo de produção é alto e não tem muito como baixar. Como resolver essa equação para ampliar o leitorado?
A gente não pode falar que o livro não é caro, ele é para muitas pessoas, como para muitos um pão é caro. A gente vive num país de extrema desigualdade.
Mas eu acho que na nossa literatura ainda tem muito pouca cultura de biblioteca. Ter mais centros comunitários talvez seja uma possibilidade de democratização. É possível criar mais espaços de acesso a livros que não necessariamente envolvam comprar, mas a pessoa poder pegar, ler e compartilhar com outras pessoas.
Enquanto nós não fazemos o essencial, que é ter uma distribuição de renda mais justa, talvez essa seja uma alternativa.
Raio x – Carla Madeira, 59
Publicitária e jornalista de formação, com pós-graduação em marketing, fundou a agência Lápis Raro em sua cidade-natal, Belo Horizonte. Lançou seu primeiro romance, ‘Tudo É Rio’, pela Quixote-Do em 2014 após um processo criativo que levou mais de uma década. Depois, publicou ‘Véspera’ na editora Record, que relançou também ‘A Natureza da Mordida’. Em 2023, se tornou a escritora de ficção mais vendida do país
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Fonte: Uol