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Sexta-feira (3), acordei com a notícia de que a Valparaíso Vinhos e Vinhedos, em Barão, Rio Grande do Sul, tinha sido invadida pelas águas. Dentro da cantina havia um metro de água e, pelos vinhedos, corredeiras. A catástrofe do Sul, de repente, entrou com tudo pela minha porta. Tive certeza de que conhecia alguma das vítimas. Já desconfiava. Li os jornais. Além disso, no dia anterior, a amiga Lucia Porto, jornalista de Porto Alegre, editora do site Brasil de Vinhos, havia me mandado um artigo seu, bastante impactante, sobre como as enchentes do Rio Grande do Sul estavam afetando a Serra Gaúcha e os produtores de vinho. Mandou também um vídeo de um vinhedo sendo carregado pelas águas e outro da Casa Bucco, destilaria e restaurante, que foi soterrada.
Frequento a Serra Gaúcha e conheço de perto várias famílias produtoras de uva e vinho, além de umas tantas outras pessoas que acabo cruzando por ali. Então, claro, fiquei impressionada com tudo aquilo e saí logo escrevendo para amigos para saber como estavam. Fabiano Valduga, proprietário das lojas Adega Refinaria Terroir’s do Brasil e Adega Refinaria Terroir’s do Mundo, me disse que a primeira, que fica no Vale dos Vinhedos, tinha inundado, mas a segunda, que fica na cidade de Bento Gonçalves não tinha sofrido nada. Fabiano é também produtor dos ótimos vinhos e espumantes Otto. Esses estão em segurança em um depósito na cidade. Menos mal. A maior parte das respostas foi reconfortante. Estavam isolados, sem luz, sem internet e sem água em alguns casos, mas todos bem. Fui dormir mais tranquila.
Na sexta de manhã, no entanto, veio a resposta de Naiana Argenta, filha de Arnaldo Argenta, proprietário da Valparaíso: eles não estavam bem. O negócio da família parecia literalmente estar indo água abaixo. Naiana me enviou vídeos de corredeiras passando pelos vinhedos. “Entramos na terça lá e tinha um metro de água dentro”, escreveu Naiana. “Depois disso as estradas foram bloqueadas. Não sabemos ainda a dimensão dos estragos nos vinhedos e nem dentro da cantina. Mas, sim, pegou garrafas, pegou as máquinas, motores estão embaixo d’água, nem sei se irão voltar a funcionar”, continuou evidentemente aflita. “O portão eletrônico principal nem abre, tentaram manual e está emperrado. Na terça, meu pai conseguiu entrar quebrando um cadeado numa portinha dos fundos. Estava tudo escuro e só viu que entrava muita água sem parar e não tinha o que fazer. Pedimos que ele voltasse antes de ter queda de barreira. Ele ficou ilhado porque as duas estradas estavam debaixo d’água. Só conseguiu voltar à noite para casa. Hoje quer ir de novo… Vai chover muito hoje… Capaz de ficar preso na estrada…”.
Conheci Naiana e Arnaldo há dois anos, durante uma viagem que fiz à Serra Gaúcha para entrevistar famílias de produtores de vinho para o meu projeto de livro Vinhateiros do Brasil, que contará a história privada das famílias que produzem vinho neste país. Fiquei horas conversando com eles. Sei do esforço que Arnaldo, um engenheiro agrônomo, fez para levantar essa vinícola sozinho, nas horas vagas de seu trabalho como consultor em outras propriedades. Sei da dedicação da filha que, em um dado momento, largou tudo o que fazia para ajudar o pai, do amor e do orgulho que ela sente por ele. E de quanto ambos acreditam no produto que fazem. Provei os vinhos. São muito bons. Pensei em escrever a respeito. Todos, no entanto, me diziam que ainda era cedo para fazer qualquer consideração sobre como essa catástrofe estava afetando os produtores de vinho, que ninguém tinha muita informação. Seguia chovendo.
Neste domingo (5), saiu o sol no Rio Grande do Sul. Ainda assim, todos continuavam dizendo que não havia um balanço do impacto das chuvas para o setor vitivinícola. Porém, voltei a falar com os Argenta e achei que valia a pena contar para vocês um pouco dessa história. Soube que alguns homens da família estiveram na vinícola fazendo um mutirão para tirar o barro. Ainda estão sem água e sem luz. Então, só foi possível tirar o grosso, a lama que deu para tirar com pás de jardim. Não é possível ainda saber se as máquinas estão funcionando.
“Em relação aos vinhedos, toda a parte baixa dos nossos vinhedos, mais ou menos um hectare e meio, ficou submersa uns 40 cm”, me contou Arnaldo. “A água derrubou várias fileiras de postes, caíram lonas (o vinhedo deles é coberto), perdemos alguns postes e marcos. Quanto às mudas em si, muitas deitaram. Nós vamos ter que avaliar, ver se dá para recuperar, porque é uma situação tão atípica que eu não sei dizer o que vai acontecer. Ficaram todos os resíduos da lama. A brita que veio da rua pavimentou parte dos vinhedos, para você ver a quantidade de lixo e coisa que veio para dentro do vinhedo! Mas a gente nem deu prioridade para ficar olhando os vinhedos. Nem subi nos vinhedos de viníferas para ver o que aconteceu, pois ainda tem risco. Em todo caso, olhando para o lado e vendo o que está acontecendo no estado inteiro, nós temos mais que agradecer do que reclamar. Têm muitas vidas sendo perdidas, muitas pessoas perdendo casas e tudo.”
De fato, o caso dos Argenta não é o pior. Na sexta-feira ainda, vi um vídeo no Instagram de outro amigo, o enólogo Carlos Sanabria, contando que o tio dele, irmão da mãe, um produtor de uva, estava desaparecido. Perguntei o que aconteceu. “Ele estava em casa, mas a casa foi carregada pela enxurrada”, contou. “Era perto do rio…”. Triste. Fiquei sabendo também de um colaborador da Família Geisse, em Pinto Bandeira, que teve a casa soterrada, ficou ferido e perdeu a esposa. Descobri ainda que um casal de sócios da Casa Bucco (aquela do vídeo de que falei no início), Rodrigo Cagol, de 32 anos, e Elisa Bucco Tomasi, de 22, morreu. Não sei se a voz do vídeo é do rapaz que morreu, se gravou depois de estar ferido e antes de morrer, já que fala que a mulher está embaixo dos escombros, ou se é do seu sócio. Muita gente morreu.
Neste domingo, segundo documento divulgado pelo governo do Estado, foram contabilizados 75 mortos no Rio Grande do Sul. Ainda havia 100 desaparecidos, 155 feridos, 15.192 pessoas em abrigos, 80.573 desalojadas e 710.022 afetadas. Dos 497 municípios do Estado, 332 foram afetados, inclusive Porto Alegre. Isso representa três vezes mais municípios do que nas enchentes de setembro de 2023. Em dez dias, choveu 420 mm.
Certamente, a indústria vinícola não é a única e nem a maior prejudicada. O Vale dos Vinhedos, onde há muitas vinícolas, não foi a região mais atingida. Ainda assim, as enchentes do Rio Grande do Sul representam uma catástrofe para o vinho brasileiro. Justo agora, que o consumidor começava a perder o preconceito contra o vinho nacional, vem esse baque. O Rio Grande do Sul é de longe o maior produtor de vinhos do Brasil. Na safra 2023, produziu mais de 60% da uva brasileira e quase 90% do vinho nacional. Se não reagirmos rápido, o vinho brasileiro pode ser soterrado por este desastre ambiental. Reagir rápido, no caso dos consumidores, significa comprar vinhos gaúchos direto dos sites de seus produtores e ter paciência para esperar a entrega.
Compre vinhos gaúchos. Neste primeiro momento, não dos supermercados, mas, sim, direto dos produtores. Eles precisam dessa entrada de caixa para tocarem seus negócios. Daqui a pouco, você recebe o vinho em casa. Todo mundo sai ganhando. Não vou indicar rótulos porque todos precisam. Alguns mais, como a Valparaíso, que, no meio do seu próprio infortúnio, ainda promete doar 30% do arrecadado com as vendas até o dia 10 de maio para instituições que estejam cuidando dos feridos e desabrigados. Mas todas precisam. Se você souber de alguma que esteja passando por maiores dificuldades, por favor, escreva nos comentários.
A Serra Gaúcha, onde se concentra a maior produção de uvas do estado, está isolada. As enchentes arrastaram pessoas, automóveis, residências e estabelecimentos comerciais. Carregaram plantações, entre elas, vinhedos. Inundaram empresas e prejudicaram o abastecimento de água e luz, sem falar nos alimentos e todos os outros itens que não têm por onde chegar. E nem por onde sair. Pelo menos por uns dias. Por isso, é preciso paciência para esperar a entrega.
Mesmo as vinícolas grandes terão prejuízo. Além de não estarem em pleno funcionamento, não têm como escoar seus estoques. Conversei neste domingo com o Adriano Miolo, superintendente do Grupo Miolo, uma das maiores vinícolas do Brasil, e ele me disse que está chegando à vinícola por uma estrada de terra porque o acesso principal está fechado. “Graças a Deus, não aconteceu nada com nossos colaboradores”, disse. “A pior catástrofe foi mais para o interior, com deslizamento das encostas, queda de barreiras, até soterramento de casas, em Faria Lemos, na linha Alcântara, no Vale Aurora… muitos produtores de uva. Foi muito grave. Obviamente, a primeira preocupação foi salvar vidas. Ainda estavam resgatando gente, mas me parece que estavam finalizando isso hoje (domingo) nas regiões mais difíceis. Foram resgatadas mais de 700 pessoas só aqui em Bento Gonçalves. Agora é dar apoio para essas famílias desalojadas (isso as prefeituras já estão fazendo) e recuperar os acessos para as pessoas poderem retomar a vida normal. É um trabalho monstruoso, porque tudo foi destruído. As empresas também estão com o problema de falta de acesso. As carretas não conseguem chegar até elas. As vinícolas não têm centros de distribuição fora do estado. Todas dependem de acessos (que estão bloqueados) para poder escoar a sua produção. Esse é o maior desafio do momento, não só para as vinícolas e não só aqui na Serra, mas em todo o Rio Grande do Sul para todas as empresas.”
No caso do poder público, além de socorrer quem precisa de socorro imediato, desobstruir vias de acesso e restabelecer serviços básicos, reagir rápido, que eu disse acima ser preciso, é liberar o quanto antes verbas para a reconstrução dessas estradas, pontes e outras obras de infraestrutura, para a construção de casas para a população carente desalojada, criar linhas de financiamento e estabelecer uma política fiscal e um sistema jurídico de emergência. Tudo isso, tanto o governo federal quanto o congresso e o judiciário estão prometendo fazer. O governo do estado e as prefeituras também têm se mostrado dispostos a fazer o que for necessário.
Vamos ver como isso tudo vai se dar na prática. Não posso afirmar que as promessas serão cumpridas. No entanto, me incomoda ver o uso político da desgraça. Um prefeito grava um vídeo com uma declaração emocionada de como ele é bacana e vai resolver a situação sozinho sem esperar a ajuda que nunca vem (isso dois dias depois da catástrofe ter início). Isso me irrita, embora ache bom que ele tome atitudes para resolver a situação.
Incomoda ainda mais ver apoiadores do Bolsonaro tentando usar a tragédia do povo para detonar seus rivais. Ou seja, qualquer um que tenha o mínimo apreço pela democracia. Nas redes sociais, vejo recomendações para que não se envie dinheiro para o programa de auxílio do governo do estado, que “certamente será desviado para corrupção”. Leio comentários sobre o descaso absurdo do governo, “algo inimaginável, nunca visto antes”. Ninguém menciona o nome do presidente da República, mas é evidente que é a Lula que estão se referindo.
Pelo que li, me parece que tanto o governo do estado quanto o federal, neste momento, estão fazendo a sua parte. Claro, alguém poderia argumentar, com propriedade, que ambos falharam em prevenir essa catástrofe. Falharam, por exemplo, ao permitir as condições de ocupação que causaram muitas das mortes e dos prejuízos materiais. De fato, mais poderia ter sido feito em relação à defesa civil, mais dinheiro poderia ter sido empregado em obras de infraestrutura e programas sociais.
Se é para falar em política, no entanto, enquanto torro nos 34 graus de São Paulo, lembro que no mês de maio no milênio passado eu usava gola olímpica, ligo isso com os eventos climáticos do Sul e penso que o mais urgente é parar o desmatamento tanto da Amazônia quanto do Cerrado. Episódios como este do Rio Grande do Sul deveriam ser mais do que suficientes para pararmos de eleger políticos que negam a participação humana nas mudanças climáticas e que defendem o direito de desmatar, gente que abertamente quer deixar a boiada passar. Suficientes para provar que os interesses do pequeno produtor de uva da Serra Gaúcha não coincidem em nada com aqueles do grande grande produtor de grãos do sul do estado e do Cerrado, muito menos com os dos pecuaristas (muitas vezes grileiros) da Amazônia. Suficientes para provar que, em última instância, desmatar não é do interesse nem do desmatador, porque esse também vai morrer com a boca seca ou vítima de uma das calamidades que ele ajuda a criar. Espero que sejam.
Enfim, minhas recomendações da semana, portanto, não podem ser este ou aquele vinho, mas, sim, as três ações a seguir: doe para programas de auxílio ao Rio Grande do Sul promovidos por instituições na qual você confie (sejam elas a câmara de comércio de uma cidade, o governo tucano do estado ou o MST), compre vinho gaúcho e comece a pensar bem em quem vai votar nas próximas eleições.
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Fonte: Folha de São Paulo