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A taça Havaí é um colosso. Chamá-la de taça, aliás, é licença poética: as seis bolas de sorvete (!) são distribuídas sobre a metade de um abacaxi, com coroa e tudo.
Dentro da casca, a polpa do abacaxi é cortada em cubinhos e regada com calda de cereja. Depois disso, além do sorvete, essa maravilha arquitetônica recebe todos os tipos possíveis de coberturas e confeitos.
Se o colosso de abacaxi não lhe causa espanto, você nasceu na época em que as sorveterias ofereciam sabores como passas ao rum, flocos, nata, creme russo, crocante, ameixa, tutti-frutti, coco queimado e milho verde.
Populares nos anos 1970 e 1980, os sabores tipo doce-de-vó e as taças pantagruélicas entraram em franco declínio na virada do milênio. Ainda podem ser encontrados em alguns lugares, porém —sinal de que o universo do sorvete ainda não se transformou num deserto de pistache e caramelo com flor de sal.
A sorveteria Damp, com matriz no Ipiranga (zona sul de São Paulo), é a mais antiga da cidade. Foi fundada em 1970 e segue firme e forte com cassata, tartufo, banana split, sundae, vaca preta e quase todos os sabores old school de sorvete. É de lá a taça Havaí, um monumento à glutonaria desenfreada e meio cafona dos tempos da calça boca-de-sino.
O balcão refrigerado exibe algumas pérolas retrô como o sabor zuppa inglese: sorvete de chocolate, sorvete de creme e biscoito champanhe embebido em licores de chocolate e de cacau.
O sorvete de creme, outro clássico em extinção, é um dos xodós de Elisângela Silvério Macedo, gerente da sorveteria há 34 anos. “Tem muita confusão, mesmo do pessoal que vende, entre nata, baunilha e creme”, diz. E explica: “Nata é só leite; baunilha tem leite e extrato de baunilha; já o creme tem tudo isso e ovos”.
Se você adicionar vinho marsala ao creme, vira zabaione –mais um do baú da nostalgia.
Outra experiência passadista de sorvete pode ser apreciada por módicos R$ 6 todos os sábados, domingos e feriados no parque da Água Branca, na zona oeste. Por volta do meio-dia, quando o sol esquenta a valer, forma-se uma longa fila de crianças (e seus pais) em frente à máquina de sorvete tipo americano, do pernambucano José Lopes Bispo Sobrinho, 74 anos.
Em junho, seu Zé completará 50 anos vendendo casquinhas, sempre no mesmo ponto e com a mesma máquina. “Essas máquinas eram feitas na rua Brigadeiro Galvão, aqui na Barra Funda”, diz o sorveteiro. “A fábrica nem existe mais.”
Sorvete tipo americano é uma variação daquilo que se chamava, no século passado, de sorvete italiano. Este é a casquinha das redes de fast food, mais conhecida agora pelo nome em inglês, soft serve.
A máquina do seu Zé tem garrafas cheias de líquidos de cores berrantes penduradas de ponta-cabeça, três de cada lado do tubo onde a mágica acontece. O sorvete, espesso, sai como um cilindro liso, um tanto fálico –as crianças não percebem, os adultos parecem não se incomodar com isso.
Exatamente o que há dentro das garrafas coloridas?
“É gelatina”, conta Cleyton Andrade Alqualo, dono do Sorvete das Antigas –serviço que aluga máquinas de sorvete tipo americano para festas e eventos. “A gente mistura água filtrada, gelatina neutra, açúcar e um preparado de sabor.”
Os sabores, sintéticos, lembram aqueles da gelatina de caixinha: morango, uva, maçã verde, abacaxi, groselha. Um deleite de memória afetiva para quem cresceu comendo doces ultraprocessados e nunca desenvolveu um paladar adulto.
Para gostos mais crescidos, exigentes e refinados, sorveterias de pegada gastronômica têm feito releituras assaz gourmets dos carros-chefes d’antanho.
A Frida & Mina, em Pinheiros, produz o sorvete de crocante com um pé-de-moleque que, no lugar de amendoim, leva macadâmias —pode chamar de praliné. A Pinguina, na Vila Madalena, perfuma com cumaru o sorvete de flocos.
“O sabor passas ao rum, por aqui, é acrescido de raspas de chocolate branco”, diz Milene Ribas, da Sorvetes Bárbaros, em Perdizes. A casa também prepara sorvete de ameixa, o terror oculto dos recheios de bolo na minha infância.
“Se vendêssemos só sorvete de ameixa e passas, não estaríamos aqui agora”, diz Elisângela, da Damp. A loja fez o movimento inverso das marcas moderninhas: incorporou sabores que agradam às gerações que não sabem quem foi Chacrinha.
Tem cookies, Kit Kat, cupuaçu, açaí, iogurte grego e frutas vermelhas. Tem ousadias como gorgonzola, violeta e brie com damasco. Tem, obviamente, pistache e caramelo com flor de sal.
Mas eu quero mesmo é saber das passas ao rum, sabor que eu adorava quando criança e que me foi roubado no decorrer dos anos. “As passas ficam pelo menos 30 dias embebidas no rum”, conta Elisângela.
Rum de verdade? Que rum? “Montilla Carta Ouro.” Gente! Peraí, esse negócio é servido às crianças?
A gerente responde com firmeza: “De jeito nenhum”. Os funcionários da Damp são instruídos a pedir RG para quem tem cara de pirralho e quer algum sabor com álcool.
No meu tempo de criança não tinha isso aí, não.
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Fonte: Folha de São Paulo