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Ziraldo sempre disse que escrever e desenhar um livro são como gerar e criar um filho. Depois da morte, aos 91 anos, do poeta, designer de primeira, também cartunista, jornalista e cronista que ele foi, sua obra, mais do que nunca, pertence a todos os brasileiros, integra o inventário simbólico do país.
O autor do personagem Menino Maluquinho inventou um padrão visual e um estilo de escrever para o público infantil —nisso reside a principal contribuição para a formação da criança que tinha entre cinco e 12 anos entre 1966 a 1980.
O artista mineiro vivia recluso desde 2018, por causa da saúde debilitada. A causa da morte foi uma falência múltipla dos órgãos, segundo sua filha, Daniela Thomas.
Onde atuou, o Ziraldo deixou marca própria e original. O Pasquim é considerado o principal jornal crítico da contemporaneidade. Ziraldo foi preso político pelo conjunto de edições e produção no semanário, veiculado durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985). Entre os intelectuais que o criaram destacam-se Paulo Francis, Millôr Fernandes, Jaguar, Luís Carlos Maciel. Nesse momento, o texto vale tanto quanto o cartum, que fala mais alto em tempos de vozes silenciadas, exílios e prisões.
A partir da “A Turma do Pererê” (1961) e em forma de histórias em quadrinhos, Ziraldo deu início à revisão da literatura infanto-juvenil que se produzia na nação. Leitor de Monteiro Lobato (1882-1948), mas fã mesmo de Machado de Assis (1839-1908), o autor cumpriu a fase da releitura dos mitos difundidos às crianças.
Com isso, pôs em cheque o imaginário brasileiro durante pelo menos 50 anos, já que o gibi se transformou em coleções de livros adquiridos pelo governo para escolas públicas. A lenda sincrética do saci convive com a figura da onça e do índio brasileiros e com a tartaruga das fábulas herdada do Oriente.
Os personagens são ainda pretextos para o autor opinar sobre a humana forma de viver de seu tempo, transporta-os para o ambiente contemporâneo, com preocupações éticas e ecológicas.
Na esteira das fábulas e crônicas com animais, nasceu “O Bichinho da Maçã”, ponte para a produção intelectual de Ziraldo para adultos, já que o personagem é um contador de piadas e retoma a linguagem dos cartuns, que deu ao jornalista notoriedade em “O Pasquim”.
Segue-se, então, sua obra-prima, “Flicts” (1969), combinação apropriada entre a concepção de livro ilustrado e logotipos industriais, que entravam na poesia como um tipo especial de vocábulo. Aliada à nova forma, versos representam a tristeza de um menino-cor, à procura de seu lugar no mundo.
Depois veio a crônica-cartum-poema “O Menino Maluquinho”, traduzido até em catalão. Intimista, o livro destaca a tristeza lírica da criança diante da separação dos pais, hoje lugar-comum no cotidiano infantil. Em 2022, o personagem virou série animada da Netflix.
O trânsito pelo trabalho publicitário transferiu saberes para o campo da crônica poética na produção infantil.
Ziraldo virou campeão de vendas —seus livros venderam mais de 10 milhões de exemplares— e nunca mais saiu de cartaz, em livros, filmes, gibis, peças de teatro, tudo isso a partir dos desdobramentos da obra em curso.
Durante a pandemia de Covid-19, sua filha, Fabrizia Alves Pinto, reeditou uma charge feita por Ziraldo durante a ditadura. Nela, o mapa do Brasil explodia em sangue, retratando a violência daquela época. Em 2020, ganhou o significado das mortes causadas pelo coronavírus.
Fabrizia mantém o Instituto Ziraldo, no antigo estúdio do cartunista, no Rio de Janeiro, com parte de seu acervo. Em 2018, mais de 500 obras do artista foram exibidas em uma mega exposição em São Paulo. Desde março, seu trabalho é tema da exposição “Mundo Zira – Ziraldo Interativo”, em cartaz no CCBB carioca.
É cedo para avaliar sua obra. Ela dá-se a ver por inteira agora e exige revisão. Por que ele não foi escolhido para a Academia Brasileira de Letras? Por que não entrou nas antologias de poesia, como reconhecimento pelas instâncias legitimadoras, e permanece restrita ao universo supostamente inferior da literatura infantil, com mais de 150 livros publicados?
Antes o poeta-pintor fosse eterno, pois não há tristeza que cesse diante da morte de Ziraldo. Parafraseando a frase de Roberto Carlos a Caetano Veloso: “Artista nunca envelhece”. Por que tem de morrer?
Chegou a dizer disparates em opiniões à mídia, porque conquistou o direito de revelar o que considerava a crueza de um regime social, político e econômico mais injusto do que em seu tempo de juventude. Se considerava um “aspite”, isto é, um assessor de palpites. Repetiu como papagaio que os pais hoje deixam as crianças “mais burras e submissas”. Que isso sirva a todos de lição e fique como herança de quem nunca teve medo de lutar por um Brasil humano.
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Fonte: Uol