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“Eu devolvo a pergunta para vocês, meus amigos”, diz Davi Rieseman a uma plateia atenta, meses antes das eleições de 2018. “Será que não tem aí um caminho para enfrentar os problemas que nós judeus temos hoje?”
O palestrante é diretor de uma seguradora onde foi empregado pelo sogro —o conservador self-made-man apelidado de Velho Uri. Fala em agir “no limite do limite”, treinar boxe e comprar uma pistola Beretta.
“Mesmo que o mundo tenha mudado tanto, e a a ameaça a nosso povo seja mais difusa que no século passado, ainda é muito barato enfrentar a ameaça, o gigante que nos olha da outra ponta do ringue.”
O protagonista de “Passeio com o Gigante”, novo romance do gaúcho Michel Laub, não se furta a opiniões polêmicas —ou extremistas, para usar vocabulário mais adequado.
Ressalte-se, antes de tudo, que o livro ficou pronto antes do morticínio na Faixa de Gaza iniciado no último 7 de outubro. Laub não viu motivo para mexer na narrativa depois dos acontecimentos.
O romance circula em torno desse discurso feito às vésperas da condução de Jair Bolsonaro à Presidência, sem tratar o ex-mandatário pelo nome, mas sem deixar qualquer margem para dúvida.
Rieseman é um líder comunitário, poderoso e aferrado à religião que encontra no político do PL uma aliança, segundo Laub, “de momento”.
“E para esse personagem, no momento, a força está ali”, afirma Laub em seu apartamento no bairro de Higienópolis, em São Paulo. Segundo ele, a opção pelo bolsonarismo é “mais racional do que parece” ao olhar de pessoas menos à direita, como ele próprio.
“São tempos de muita incerteza sobre o futuro, e o Estado não deu respostas. Quem está oferecendo isso são as igrejas, com o discurso de solidariedade, e o aliado delas, Bolsonaro, com seu discurso do ‘salve-se quem puder’.”
O argumento que Rieseman usa para convencer seu público tem a ver com uma guinada entre a maneira como a comunidade judaica se enxerga e a maneira como, segundo ele, deve se enxergar.
“Será que os judeus não percebem a armadilha? Por que a gente acha que isso é uma regra, a pessoa olhar para uma vítima e sentir pena?”, continua o protagonista, após lembrar traumas históricos como o Holocausto. “Às vezes é o contrário. A pessoa olha e sente raiva, desprezo, porque a vítima está querendo tirar alguma coisa da gente fazendo papel de vítima.”
É claro que Laub, que é judeu e já explorou essa identidade com franqueza ímpar em “Diário da Queda”, não partilha dos pontos de vista de seu personagem —o romance nasceu, na verdade, de sua perplexidade com a situação, desdobrada na vontade de compreendê-la.
Isso porque, diz ele, “se você olhar a história do antissemitismo, ela é muito a história do identitarismo branco, cristão, da extrema direita como a conhecemos a partir do início do século 20.”
É um autor, afinal, acostumado ao exercício de entrar nos pensamentos de quem vê o mundo diferentemente dele —seu livro anterior, “Solução de Dois Estados”, dividia o discurso entre um microempreendedor bolsonarista e uma militante de esquerda que não conseguiam se entender.
Ambos se distanciam de seu autor, que afirma nunca ter embarcado na “radicalidade essencialista” das identidades, ou seja, “você não pode argumentar porque você é isso, você é aquilo”. Sua identidade, diz, é só o ponto de partida.
“As identidades são relacionais, depende da situação, de quem está do outro lado. Se eu estiver numa manifestação antissemita, vou me sentir ofendido e poder me colocar no lugar da vítima. No momento seguinte, se estou no mercado de trabalho no Brasil, que dá muito mais oportunidade para os homens, então estou no papel de integrante de uma engrenagem opressora.”
É algo que opera no próprio protagonista, Davi, que conclama seu povo a tomar as rédeas de seu destino e, ao mesmo tempo, manipula a plateia com narrativas de vitimização pelo sofrimento de sua família.
Essa altercação de papéis sociais é tão fluida, continua Laub, que “de manhã você é uma coisa, de tarde é outra”. “Se há algo que vale a pena de escrever livros é falar dessas coisas mais complexas. Senão, eu ia para o Instagram só falar pelo cessar-fogo imediato. Ia ser muito mais fácil.”
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Fonte: Uol