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Harmonizar ovo de páscoa com vinho é forçar a barra. Com vinho seco, é um crime. Estraga o vinho e arruina o chocolate. Com vinho doce, até vai, mas não é o par perfeito. Com sua estrutura potente, o cacau combina com destilado amadeirado: rum, uísque, conhaque. Isso, sim, é uma delícia. Essa é a minha opinião, claro. Tem muita gente que discorda. Haja vista a enxurrada de artigos publicados nesta época do ano com listas tentando casar malbec, tannat e até espumante seco com diferentes tipos de ovos de páscoa.
O doce de Páscoa que vai bem com vinho é a colomba pascal. Assim como o panetone, a colomba pascal não é um bolo. É um pão doce enriquecido. Com esse nome , foi criada em Milão, na Itália, na década de 1930, por Angelo Motta, confeiteiro responsável pela industrialização e popularização do panetone. Motta, já então dono de uma grande indústria,queria diminuir a sazonalidade do seu negócio e aproveitar a massa base do panetone para fazer um outro produto. Já era comum entre os italianos do norte comer um pão doce enriquecido no período da Páscoa, mas foi Motta quem, em homenagem ao espírito santo, deu o formato de pomba e o nome de colomba (pomba, em italiano) para o doce.
Originalmente, a colomba era bem parecida com o panetone, mas nunca foi igual. Sua massa era mais rica em manteiga e leite. Tinha menos passas e mais laranja cristalizada. Era baixa e levava uma cobertura de açúcar com avelã, assim como os panetones de origem piemontesa até hoje. Hoje há colombas com todo tipo de ingredientes: chocolate, pistache, damasco, amêndoas, etc.
Pensando no almoço de Páscoa, fiz uma prova de colombas e vinhos para escolher alguns pares que harmonizassem. A principal regra de harmonização de vinhos com sobremesas é: o vinho tem de ser tão ou mais doce do que a sobremesa. As outras são parecidas com as regras usadas para qualquer vinho. Fazer uma harmonização por similaridade é uma delas. Buscar acidez no vinho para cortar a gordura da comida é outra. Seguir a tradição das regiões produtoras é outra.
As regras de harmonização, no entanto, existem para nos guiar e aumentar nossas chances de acerto, mas não são leis e muitas vezes dão errado. Lembrei muito disso enquanto provava cada uma das oito colombas com cada um dos oito vinhos. Algumas coisas, que imaginei que dariam certo, deram muito errado. Outras combinações, nas quais não punha nenhuma fé, deram muito certo.
No entanto, a regra principal foi mantida. Os vinhos todos têm açúcar suficiente para encarar suas parceiras. Sei que o consumidor brasileiro de vinhos finos (aqueles feitos de uvas de origem europeia) tem dificuldade para aceitar a existência de vinhos doces de qualidade (ainda que existam vinhos doces de milhares de reais), mas, sinto muito, não vou recomendar algo que fica ruim, como vinho seco com chocolate, só para ganhar clique.
A verdade é que o consumidor médio não conhece os vários vinhos doces maravilhosos que existem por aí. A ideia deste texto, portanto, mais do que dar uma sugestão imediata para o almoço de domingo, é apresentar alguns dos principais estilos de vinhos doces. Se você o ler depois da Páscoa, não faz mal. Deve aprender um pouco sobre vinhos de sobremesa. Veja a seguir:
Feitos um para o outro
O Piemonte é o paraíso para gente ligada em comida e bebida. Tem alguns dos melhores vinhos do mundo, como o barolo e o barbaresco, tem as trufas brancas, tem os cremes de avelã (aqueles que deram origem à Nutella). Além disso, é um dos berços do panetone junto com Milão.
De lá vem a dupla de colomba e moscato d’Asti criada pela vinícola Coppo. Em uma visita ao Piemonte, estive na Coppo, na linda Cainelli. A vinícola é famosa pelos seus tintos da uva barbera que, à diferença de outros barberas, competem em preço e prestígio com barolo e barbaresco. Sua marca é a elegância. Essa elegância está presente também no delicado Moscato d’Asti Moncalvina. Nele, tudo é equilibrado. O açúcar e a acidez se compensam. Os aromas florais e frutados estão ali, mas sem os exageros de alguns moscatos.
Moscato D’Asti é uma DOCG (denominazione di origine controllata e garantita), mas é também um estilo de espumante. Existe o método asti de se fazer espumantes. Nele, assim como no método charmat, o mosto da uva é fermentado em tanques pressurizados. No entanto, à diferença do charmat, a fermentação alcoólica é interrompida quando o vinho está com uma graduação alcoólica não muito alta (5% no caso deste rótulo) e ainda mantém um bom nível de açúcar residual (a ficha técnica não informa o nível deste rótulo em específico). Também tem menos gás, já que o gás se forma no período de fermentação. O Moncalvina é um frisante, não um espumante. O gás contudo é bastante perceptível e torna tudo mais leve.Importado pela Mistral, ele custa R$ 292,40.
A colomba tem esse vinho na sua massa. Os aromas são muito parecidos. Além daquele cítrico de frutas cristalizadas típico dos panetones, aparece o delicado floral da uva moscato bianco di Canelli. É produzida pela Albertengo a partir de uma madre centenária. Os produtores mais tradicionais de panetone italianos, inclusive a Bauducco, que é brasileira, mas foi fundada por um piemontês, têm madres muito antigas, colônias de leveduras que são próprias do panetone (e da colomba) e diferentes das dos pães ou dos bolos de fermentação natural. Hoje em dia até há quem faça tanto panetone quanto colomba com misturas e fermentos em pó, mas não é a mesma coisa. A massa fica menos úmida, menos fofa, menos leve. No caso desta colomba em especial, acrescente um grau a mais de leveza. Creio eu, devido ao gás do vinho. É a primeira vez que a Mistral, que sempre traz o panetone, importa a colomba. A unidade de um quilo custa R$ 259,00.
Nem tão doce assim
Se é daquelas pessoas que não gosta de coisas muito doces, este é o par perfeito para você: o espumante espanhol Freixenet Cuvée Prestige Malvasia 2011 (R$ 219,90, no site da Freixenet Brasil) com a colomba de frutas e amêndoas do Empório Santa Maria, em São Paulo. Nada em ambos exagera no açúcar. A colomba (R$ 70,00, a unidade de 550g) tem massa amanteigada aromatizada com laranja, frutas secas e amêndoas, com uma casquinha crocante de amêndoas na cobertura.
Já o espumante é um cava dolç, ou seja, um espumante feito segundo as regras da denominação de origem (DO) Cava classificado como dolç (doce). Isso significa que ele tem, no mínimo, 50g de açúcar por litro. Um monte, mas não se percebe. Claro, há um dulçor, mas ele tem tanta mineralidade e frescor que chega a ter também um salgadinho.
Nesta DO, que é bastante ampla em termos de território, todos os espumantes são produzidos pelo método tradicional, o mesmo dos champanhes. Para lembrar, duas fermentações, uma em tanque, outra na garrafa com as borras. A segunda fermentação é provocada por uma solução de leveduras, vinho e açúcar, chamada licor de tiragem, que se acrescenta ao vinho base antes de engarrafá-lo. Como essa segunda fermentação acontece em ambiente fechado, o gás produzido pela ação das leveduras não escapa e permanece na garrafa. No fim do processo, as borras das leveduras são tiradas fora e acrescenta-se o chamado licor de expedição, uma mistura açucarada em maior ou menor grau que pode conter vinho, mosto e até destilados. O licor de expedição é que vai determinar se um espumante será nature (não leva licor de expedição), extra brut, brut, demi-sec ou doce.
No caso deste Malvasia 2011, na Espanha ele é considerado doce porque tem 52g/l de açúcar. No Brasil, é demi-sec, porque os doces têm de ter mais de 60g/l. Tudo isso não passa de normas regulatórias. Na boca, como disse acima, esse açúcar não aparece tanto. O curioso sobre o licor de expedição deste vinho é que ele é feito com mosto envelhecido em barris de castanheiro em sistema de solera (empilhados e vai se misturando o conteúdo dos barris do alto, mostos mais jovens, com os do solo, sempre que se tira deles algo para usar no licor de expedição. O conteúdo desses barris tem em média 20 anos. Isso dá ao vinho uns aromas oxidados que lembram um jerez.
Como já tem 13 anos, este cava está bastante evoluído e tem bastante complexidade aromática. Tem as frutas secas, as nozes, o brioche tostado. Senti também bastante presente o salsão. Tudo isso casou muito bem com esta colomba mais sóbria. Na prova, ficou claro que os vinhos muito doces a cobriam completamente.
Um clássico italiano
Lembra da regra da harmonização por região? Pois é, o vinho de sobremesa mais famoso no norte da Itália é o vin santo del Chianti. Há uns 20 anos, entrevistei o produtor do panetone italiano Bonifanti e ele me contou que, no dia de Natal, depois de sentir que estava com a missão cumprida, sentava e comia um pedaço de panetone com uma taça de vin santo. Isso chamou minha atenção para essa combinação que realmente funciona.
Escolhi o Il Nostro Rosseti Vin Santo del Chianti, que é importado pela World Wine e custa R$ 280,00 a garrafa de 375 ml. É caro, eu sei, mas é uma preciosidade e dura quase infinitamente na adega climatizada depois de a garrafa ser aberta. Além do mais, para vin santo, o preço não está alto. Tem outros bem mais caros por aí.
Sua origem é incerta. Hoje é produzido principalmente na Toscana, com uvas passificadas e descansa, no mínimo, três anos em barricas pequenas. Em geral, a partir da uvas brancas malvasia e trebbiano, mas existe também vin santo feito da tinta sangiovese. A este último, dão o nome de Occhio di Pernice (olho de perdiz). O Il Nostro um vinho de tom ambar, aromas de mel, frutas secas, tâmaras, damascos, amêndoas e laranja em compota. Na boca, é encorpado. O açúcar é evidente, sentimos um caramelo, mas há uma boa acidez.
Tudo isso foi muito bem com a colomba com frutas cristalizadas Casa Bauducco, uma colomba tradicional recheada com frutas e com cobertura açucarada e castanhas-de-caju. Os produtos da Casa Bauducco são feitos pela Bauducco, é clara, mas com receitas um pouco mais ricas. Levam mais manteiga, mais leite, mais frutas. Provei várias colombas com o vin santo. Esta foi a que ficou melhor. O vinho envolve a massa macia e parece que foi feito para ela. A unidade de 500g custa R$ 52,90.
O match perfeito e bom para o bolso
O bom sommelier deveria sempre degustar uma harmonização antes de sugeri-la a seus clientes. A cartilha na prática é outra. De início, eu tinha certeza que o moscatel de Setúbal combinaria muito bem com a colomba mais tradicional, já que ambos têm aromas marcados de laranja cristalizada. No entanto, a sensação de boca é mais importante do que os aromas na hora de harmonizar. O moscatel não ficou mal com a colomba pascal Bauducco tradicional, mas o Madeira Justino’s Doce combinou mais. Os dois juntos cresceram 300%, o que é ótimo para o consumidor já que ambos são fáceis de encontrar em supermercados e têm um bom preço. A colomba de 400g custa R$ 19,99 e o madeira, que é importado pela Casa Flora, fica por R$ 108,90 (375ml) no e-commerce da empresa, mas gira em torno disso também nos supermercados. Na boca, o vinho parece uma calda que envolve o doce e o deixa mais nobre.
Amo vinho madeira, especialmente porque ele tem bastante acidez. Mesmo no caso de um madeira doce, a acidez faz com que ele não seja enjoativo. O madeira é como se fosse um vinho cozido. Acredita-se que ele surgiu na época em que o Brasil era colônia de Portugal a partir dos vinhos que eram mandados para cá. Na época, os vinhos não viajavam em garrafas, mas, sim, em toneis de madeira. Para aguentar o tranco da viagem sem estragar, eles eram fortificados, ou seja, acrescentava-se álcool como conservante. A viagem era longa e o sol escaldante.
Uma hora alguém percebeu que o vinho que voltava de viagem tinha um caramelo delicioso. Talvez porque o vinho seja bastante açucarado e o calor do sol do Equador transformasse esse açúcar em caramelo. O açúcar elevado se deve ao fato de a adição de álcool ser feita quando a fermentação ainda não acabou. O álcool mata a levedura, interrompe a fermentação e o vinho fica cheio de açúcar.
Atualmente as vinícolas têm estufas para simular o porão do navio. Já visitei uma. Parece uma sauna. Nem todos os vinhos passam por essa estufa. Os mais caros envelhecem calmamente por anos à temperatura ambiente. A maioria (90%) dos vinhos madeira, como este, são feitos da casta tinta negra, mas também os feitos de sercial, verdelho, boal, malvasia e o raro terrantez. O sercial é sempre seco, o verdelho meio seco, o boal meio doce e o malvasia, doce.
Hoje em dia, as colombas da Bauducco trazem estampado em suas caixas as palavras “fermentação natural”. Na verdade, só estão anunciando agora, mas sempre foi assim. A fermentação é feita a partir de uma madre, algo parecido com o levain dos pães de fermentação natural, uma colônia de leveduras que precisa ser constantemente alimentada com farinha e depende de condições muito especiais de temperatura ambiente. Cada vez que se vai fazer um lote de panetone ou colomba, tira-se um pedaço da madre, acrescenta-se mais farinha e água e se espera crescer. Há 20 anos, fiz um livro sobre a história do panetone para a Bauducco. Entrei na sala onde a madre, ou melhor, as madres ficam guardadas, a sala do tesouro. Aquilo não pode morrer. A madre original veio da Itália, em 1948, com Carlo Bauducco, avô dos atuais sócios. De lá para cá, a família cuida dela como de um filho. Lembro que Massimo Bauducco, o atual presidente, na época em que fiz o livro me disse que ia à fábrica até aos domingos para ver se a madre estava bem, apesar de então já existirem controles laboratoriais para medir isso. Os produtores italianos com quem conversei me disseram a mesma coisa: só de olhar “a cara” da madre, sabem se ela precisa de algo, mais farinha, mais água.
Combinação surpreendente
Nunca imaginei que um doce tão lácteo como a colomba com creme pistache do Empório Santa Maria (R$ 190,00, 650g) fosse combinar com um vinho de colheita tardia. O creme de pistache é quase um brigadeiro de pistache. Tem um peso que eu jurava que fosse soterrar um vinho tão delicado. No entanto, depois de prová-la com os outros vinhos que eu tinha à minha disposição e não estar convencida de ter encontrado algum que casasse perfeitamente com essa colomba tão gostosa, decidi arriscar um gole do Les Perruchers 2018 do Domaine La Bonnelière. Uma epifania! Ficou incrível! Foi como se o vinho tivesse entrado na massa do “brigadeiro” e feito dele algo mais delicado, um pouco azedinho, instigante. Isso é harmonização: uma mágica que acontece na sua boca.
O vinho é um chenin blanc da AOP Coteaux de Samur, uma denominação de origem do Vale do Loire para vinhos de colheita tardia. O vinho de colheita tardia é doce porque a uva é colhida quando já está muito madura e concentrou muito açúcar. Isso só funciona bem em regiões frias onde a uva amadurece sem perder a acidez. Alguns, não é o caso deste, podem ter botrytis, ou podridão nobre, uma doença que desidrata a uva e a torna ainda mais doce, favorecendo assim a produção de vinhos doces. Deixa também um aroma típico muito apreciado. O Les Perruchers é importado pela Chez France e custa R$ 279,00 (500 ml).
Dois clássicos
A colomba com passas e damasco da Casa Bauducco (R$ 64,90, 500g) tem sabor e aromas muito próximos dos da colomba tradicional. No lugar das frutas cristalizadas, entra o damasco que puxa mais para a acidez. Passas continuam aí. Na cobertura, um glacê, amêndoas e pérolas de açúcar. O porto Ferreira Tawny, que tem aromas oxidados, mas ainda guarda bastante da fruta, já que é um tawny jovem, funciona bem aqui. Ele aguenta todo o açúcar do glacê e a sua fruta se mistura com a fruta do doce.
Vinho do porto não é um vinho, é uma categoria de vinhos fortificados produzidos na região do Douro e envelhecidos em Vila Nova de Gaia, cidade que fica do outro lado do rio, em frente ao Porto. Hoje alguns são envelhecidos também nas quintas do Douro, onde se planta a uva e se faz o vinho. Antes isso era proibido. Não dá para eu explicar aqui tudo sobre o vinho do porto, mas guarde uma informação principal: ele se divide em dois grupos, ruby e tawny. O ruby é mais frutado e fresco. O tawny tem notas de oxidação.
Um desafio
A colomba com creme de limão siciliano do Empório Santa Maria (R$ 120,00, 650g) tem uma complexidade em seus ingredientes que a torna um desafio na hora de buscar uma harmonização. A massa é amanteigada, a cobertura é de chocolate branco e o recheio de um trufa onde predomina o creme de leite. Essas três informações me levariam a escolher um vinho estruturado, encorpado, como um porto, algo que encarasse o peso desses ingredientes. Por outro lado, a trufa é de limão siciliano e a cobertura tem raspas da casca desse limão delicado. Se fosse escolher o vinho pensando no limão, iria com algo mais leve e azedinho.
Então, fui na tentativa e erro. Os vinhos mais leves e mais ácidos não funcionaram. Já o porto Graham’s Fine Tawny, que está por R$ 149,90, no Empório Santa Maria, caiu muito bem. Ele ressaltou o gosto do chocolate sem esconder o limão. Ué, mas eu não disse que chocolate não combinava com vinho? Aqui não tem apenas chocolate. Tem a massa, tem o creme…Fora que é chocolate branco, que tem bem menos cacau.
Eita! Como faz com a colomba com gotas de chocolate?
Eu, que estava fugindo do ovo de páscoa, tive de encarar a colomba com gotas de chocolate, no caso, a da Casa Bauducco que custa R$ 52,90. O fato de não ser chocolate puro, de ter a massa clara e a essência de frutas cristalizadas facilitou bastante o serviço. De início, pensei em jogar com um dos dois portos que eu tinha à disposição. Ambos cairam bem com esta colomba. No entanto, no fim, fui conquistada pelo contraste entre essa coisa redonda do chocolate e o pontiagudo da acidez fenomenal do moscatel de Setúbal.
De cor ambar, quase laranja, o Alambre da José Maria da Fonseca (R$ 153,76) é o vinho de entrada de uma linha que tem vinhos de até 40 anos e inclui também um moscatel roxo, que custa mais de 2 mil reais. Moscatel de Setúbal é uma denominação de origem, de vinhos fortificados da região de Setúbal, próxima a Lisboa, mas é também o nome da uva usada para fazer o vinho.
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Fonte: Folha de São Paulo