[ad_1]
“Isso não é o Texas”, é a primeira frase que Beyoncé canta no single “Texas Hold ‘Em”, que apresentou o álbum “Cowboy Carter”, lançado nesta sexta-feira (29). Nascida em Houston, maior cidade do estado americano que ela cita, e criada por uma mãe de Louisiana e um pai do Alabama, ela é filha do sul dos Estados Unidos, onde o country tem suas raízes, mas em seu novo disco isso é apenas o ponto de partida.
Tratado como o disco de música country de Beyoncé, “Cowboy Carter” nasce de um desafio. Em 2016, quando apresentou a faixa “Daddy Lessons” —um country lançado em “Lemonade”, naquele ano— com as Dixie Chicks no Country Music Association Awards, ela recebeu críticas por soar deslocada no gênero —ou talvez simplesmente por ser negra em um meio musical dominado por brancos.
“Por causa dessa experiência, mergulhei na história da música country, e estudei nosso rico arquivo musical”, ela disse no comunicado em que mostrou a capa do disco. Na foto, ela aparece sentada em um cavalo branco, com roupa de boiadeira e chapéu de cowgirl, segurando uma bandeira dos Estados Unidos que é apenas parcialmente mostrada na imagem.
De certa forma, a bandeira americana no contexto representa a luta conceitual de Beyoncé, que leva à música uma batalha política. É como se, ao mostrar que tem estofo e habilidade para fazer música country, uma das maiores referências da população negra dos Estados Unidos também dissesse que é tão americana quanto a branquitude conservadora e rural tão atrelada a esse estilo de música.
Para isso, ela busca inspiração nos negros que atuaram no country ao longo da história. Em “The Linda Martell Show”, apresenta a cantora que lançou um único álbum em 1970, o primeiro grande lançamento de uma negra no gênero, e teve uma carreira marcada por dificuldades. Em “Texas Hold ‘Em”, conta com Rhiannon Giddens, artista negra com uma trajetória calcada no country e no blues, tocando banjo.
Essa defesa de um country negro é imaginada na primeira parte de “Cowboy Carter”, com faixas mais acústicas. Na abertura, “Ameriican Requiem”, Beyoncé canta que “diziam que eu falava ‘country’ demais, mas a rejeição veio, disse que eu não era ‘country’ o suficiente”. Nas frases, ela brinca com a palavra que é usada também como sinônimo de caipira, pessoa do interior.
Beyoncé faz sua versão de “Blackbird”, famosa música dos Beatles que Paul McCartney compôs inspirado pela luta dos negros americanos pelos direitos civis nos anos 1960. Ela chama cantoras negras em destaque na música country atual, como Tanner Adell, Brittney Spencer, Tiera Kennedy e Reyna Roberts.Também grava “Jolene”, traçando conexões entre a personagem cantada no clássico de Dolly Parton e a “Becky do cabelo bom” de Beyoncé na música “Sorry”, de 2016.
Parton, aliás, aparece falando num interlúdio, assim como outro ícone country americano, Willie Nelson. Ele surge como um locutor de rádio guiando o ouvinte numa espécie de intervalo, a “hora de fumar”, sendo que o cantor é conhecido como um grande defensor da maconha —droga cuja criminalização é responsável por grande parte das prisões de pessoas negras nos Estados Unidos.
Mas ao longo dos quase 90 minutos de “Cowboy Carter” o estilo musical rural americano se torna apenas um pretexto. Essa estética de violões e banjos vai se dissipando conforme se confunde com um cardápio sonoro tão vasto quanto a própria discografia da cantora. Beyoncé pega os ingredientes da música country, os mistura de diferentes formas e acrescenta outros temperos até que ele se torne outra coisa.
Ela vai do soft-rock no estilo Fleetwood Mac de “Bodyguard” ao soul psicodélico de “Ya Ya”, com samples de “These Boots Are Made For Walking”, de Nancy Sinatra, e “Good Vibrations”, dos Beach Boys. Em “Tyrant”, propõe um trap-country —com resultado distinto, apesar de proposta semelhante, ao hit “Old Town Road”, de Lil Nas X. Em “Desert Eagle”, brinca com as palavras para fazer analogias com sexo e comida por cima de uma base de baixo funkeada e cheia de eco, no estilo Funkadelic.
O marco dessa mudança de rumo é a 12ª faixa, “Spaghetti”. A artista abre com uma reflexão sobre gêneros musicais —fáceis de definir, mas que podem representar uma prisão, como diz Linda Martell. Dali, encaixa um sample de “Aquecimento das Danadas”, funk do brasileiro O Mandrake, com participação do DJ Xaropinho, e a canção se torna um pop afiado à moda Beyoncé, em que ela encarna sua persona rapper para cuspir rimas com citações ao marido, Jay-Z, e ao jogador de basquete Stephen Curry, ao dizer que não é uma cantora convencional.
De fato, se a expectativa era ouvir a voz reluzente da ex-Destiny’s Child cantando sobre corações partidos e uma saudade do campo, temas presentes na música country americana mais comercial, por cima de violões e banjos tradicionais, ela é parcialmente frustrada. Há canções típicas do estilo, como o dueto com Miley Cyrus em “II Most Wanted”, mas “Cowboy Carter” é mais um álbum de Beyoncé que uma obra usual de country.
Sequência conceitual de “Renaissance”, disco de 2022 em que a artista examinou a música da pista de dança, o novo trabalho é mais difuso e tem inegavelmente menos apelo pop. Distribuído em 27 faixas, é como se o disco pudesse ser dois —a primeira metade, com um olhar sonoramente mais conservador ao country, em que a cantora apresenta sua reivindicação racial acerca do gênero, e a segunda, esteticamente mais inventiva, em que ela chacoalha o estilo para chegar a resultados improváveis.
Se o caminho é longo —especialmente em tempos de TikTok— e, por vezes, também maçante, pelo menos a chegada é mais interessante que a partida. A reta final de “Cowboy Carter”, com “II Hands II Heaven” e “Sweet Honey Bucket”, é especialmente instigante, em que Beyoncé desenha um pop eletrônico com elementos do hip-hop entremeados por violões e uma temática country nas letras. “Amen”, a derradeira, traz a influência religiosa e negra do gospel americano.
Se não é a obra mais inovadora ou coesa da carreira de uma das maiores estrelas da música do planeta, “Cowboy Carter” também não faz Beyoncé soar cansada ou encarcerada em uma sonoridade pop e R&B que ela desenvolveu nos sete álbuns anteriores. Como “Renaissance”, mostra uma artista inquieta e disposta a sair da zona de conforto para encarar novos desafios criativos —impostos pelos outros ou por ela mesma. Enquanto faz isso, Beyoncé também reivindica e injeta negritude na expressão estética mais identificada com os brancos dos Estados Unidos. Não é pouca coisa.
[ad_2]
Fonte: Uol