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Um escritor precisa estar morto para despertar algum interesse? Margaret Atwood contradiz essa ideia: a autora canadense de “O Conto da Aia” ilumina o lado dos vivos. Divertida, ela pinta dois autorretratos: “ícone idoso e supostamente reverenciado” ou “a assustadora figura de vovozinha bruxa”.
O ensaio é uma tentativa, um esforço, como define Atwood. As opiniões de autores renomados costumam causar fascínio, ainda mais quando se trata de uma obra socialmente perspicaz, como é o caso dela —que reconhece com ironia o seu status de ícone.
“Questões Incendiárias”, sua terceira coletânea de ensaios e escritos diversos, estes compostos de 2004 a 2021, revela as reflexões da escritora e realça os temas que figuram em seus romances.
Atwood escreve que nunca quis ser modelo para ninguém, mas oferece uma tentativa de tocar os acalorados debates de nosso tempo. Para ela, as questões do século 21 são “mais do que urgentes”. Segundo a autora, o mundo está em chamas.
Isso sugere uma série de perguntas: fomos nós que ateamos o fogo? Somos capazes de apagar o incêndio? Temos aí o porquê do título da coletânea.
Parte da seleta gira em torno de impasses ambientais, sem discussões inéditas. Caímos em um didatismo que a bem-humorada Atwood não aprovaria. Nem por isso a leitura é menos prazerosa, graças à prosa afiada. “Evitem os totalitarismos! Desfrutem de vídeos de gatinhos! Leiam os direitos humanos!”, aconselha.
Os comentários da autora ganham vigor e originalidade quando voltados à literatura. As letras do Canadá, país de origem da autora, permanecem discretas entre os contemporâneos de língua anglófona e francófona. Mas não para ela. Suas melhores análises são sobre Alice Munro, laureada com o Nobel de Literatura em 2013.
Munro é, na visão de Atwood, uma autora sujeita a redescoberta periódica, que dissecou sua terra natal, o condado de Huron, assim como William Faulkner dissecou o lendário condado de Yoknapatawpha. Ela compara Munro ao pintor Paul Cézanne por sua qualidade de transformar o familiar em algo “estranho, luminoso e misterioso”.
Outras duas conterrâneas são temas de outros ensaios: Marie-Claire Blais e Gabrielle Roy. Com a última, traça um panorama das jovens mulheres canadenses com inclinação para “experimentar com a escrita na primeira metade do século 20”. O repertório de “Questões Incendiárias” inclui ainda Doris Lessing, Richard Powers, Simone de Beauvoir, Isak Dinesen e Eduardo Galeano.
A escritora é enfática: Shakespeare é seu autor favorito. Ademais, exalta o terror, o fantástico e a ficção científica, vistos tradicionalmente como gêneros menores, citando Ray Bradbury, Ursula K. Le Guin e Stephen King.
Atwood está longe de ser uma “mera escriba”, como chama a si mesma em um de seus textos. É difícil discordar, por exemplo, de suas reflexões sobre a função da literatura. Segundo ela, um autor pode ser engajado, mas é “sinistro” falar de um “dever do escritor”, debate que segue exaltando ânimos nos meios literários.
A autora de “O Conto da Aia” defende sua preferência pelo que chama de “ficção especulativa” (distopias, por exemplo): “Escrevo livros sobre possíveis futuros desagradáveis na esperança de que não permitamos que esses futuros virem realidade”.
Esperança é a palavra-chave de “Questões Incendiárias”. Ainda é possível ter um horizonte à vista. Só é preciso, para usar as palavras de Atwood, trocar de estrada. Afinal, a esperança é sempre bem-vinda, ainda mais quando acompanhada de humor afiado e comentários espirituosos sobre literatura.
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Fonte: Uol