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Não deixa de ser curioso que o novo livro infantil de Lu Alckmin, “ABC dos Coelhinhos”, seja publicado pela editora Senac-DF justamente no meio da tempestade e das acusações de censura contra a área de literatura do Sesc.
Para quem não tem acompanhado, a polêmica teve início no fim do ano passado. Durante a Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, o escritor Airton Souza, um dos vencedores do Prêmio Sesc de Literatura de 2023, leu trechos de seu livro premiado, “Outono de Carne Estranha”, no qual narra uma paixão gay entre garimpeiros de Serra Pelada.
Foi o suficiente para desagradar a alta cúpula do Sesc, presente no evento. Depois disso, o autor não foi convidado a fazer a tradicional turnê de lançamento. Já no início deste ano, o escritor Henrique Rodrigues foi demitido —ele trabalhava na área de literatura da instituição e foi um dos idealizadores do prêmio, em 2003. Isso fez com que as acusações de censura só se avolumassem, com suspeitas de que o Sesc passaria a filtrar os temas dos livros laureados no concurso deste ano.
Com isso, a Record decidiu romper a parceria com a organização e não irá mais publicar os vencedores, o que ocorria havia 20 anos. O novo edital foi divulgado na quinta-feira, dia 21. Se até 2023 as obras inscritas deveriam ser “destinadas ao público adulto”, na competição deste ano há uma mudança —os textos agora devem ser para “todos os públicos”. A troca ligou ainda mais o alerta de censura. Até porque, no lugar da Record, a editora Senac Rio será responsável pelo lançamento dos vencedores.
Como Sesc e Senac são administrados pela mesma instituição, a CNC, sigla da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, na prática tudo agora é controlado pela mesma organização, da seleção à publicação.
Pois é justamente a editora Senac-DF que lança “ABC dos Coelhinhos”, de Lu Alckmin, segunda-dama e mulher do vice-presidente, Geraldo Alckmin. Nele, a autora escreve e ilustra uma espécie de abecedário de bons comportamentos para crianças.
Na letra D, por exemplo, descobrimos que “divertido é brincar, depois guardar e cuidar”. Em F, de “fé”, aprendemos que “não importa a religião, sempre há motivos para agradecer”. A voz moralizante é escavada até nas letras menos óbvias, como no verbete da letra K: “kiwi, melancia, banana, laranja, mamão… uma alimentação saudável é o primeiro passo para manter a saúde em dia”.
Quem explica as intenções do livro é a própria escritora. No prefácio, ela diz que resolveu “fazer desenhos que mostrassem para as crianças que atitudes positivas nos levam à felicidade”. Já no posfácio, acrescenta que “cada letra do nosso alfabeto apresenta um conteúdo educativo” e que o objetivo é aprimorar nossas ações como seres humanos.
Mas será que esse é mesmo o papel da literatura?
Talvez muitos leitores, editores, livreiros, críticos, influenciadores e outros agentes dessa fauna até digam que sim. Afinal, aparentemente cresce o número de pessoas que buscam nos livros as tais “atitudes positivas” ou “conteúdos educativos que aprimorem nossas ações” —não só na literatura infantojuvenil, historicamente vista como um mero apoio educacional e pedagógico, mas também entre os adultos, o que ajuda a explicar sucessos recentes, como o da healing fiction ou literatura de cura.
Só que nunca é demais lembrar que literatura é arte, tanto faz se para adultos ou crianças. É estética. Joga no campo das ambiguidades, da desobediência, da desordem, da linguagem. Não me consta, por exemplo, que a principal preocupação ao visitar um museu seja encontrar “atitudes positivas” numa exposição. Muito menos num show. Por que então é diferente com os livros?
Vou citar aqui o Antonio Prata. “Afinal, arte não existe para fazer ninguém se sentir bem. Pra isso existem o Frontal, o Hopi Hari e os discursos motivacionais. Como disse Tchékhov, o papel do artista é fazer perguntas, não encontrar as respostas”, escreveu ele recentemente neste jornal (leia aqui).
O mesmíssimo vale para crianças. E aqui cito a Marina Colasanti. “A literatura infantil é sempre entendida como um sanduíche ou uma cápsula que carrega dentro de si conhecimentos ou princípios morais”, disse ela. “Isso envenena a literatura. As grandes obras para esse público são grandes porque escapam disso.”
O problema é que o veneno mata. E cada vez mais. Dezenas de livros andam sendo recolhidos, censurados e calados simplesmente porque, na opinião dos juízes dos bons costumes, não trazem “atitudes positivas” —um conceito que, convenhamos, é relativo e facilmente manipulável.
Esse é o ponto de livros como “ABC dos Coelhinhos”. Tudo bem evitar o risco, mirar “todos os públicos”, ser um sanduíche de princípios morais, coleção de discursos motivacionais, exemplo de autoajuda para crianças. Literatura é um direito e lê quem quer. Só não dá para transformar isso em modelo, doutrina, parâmetro de edital, referência para sala de aula ou, como diria Chimamanda Adichie, numa história única.
Porque a obra pode até querer ensinar a escovar os dentes, respeitar os mais velhos, dividir os brinquedos, reciclar o lixo, rezar direitinho. Mas não faz algo fundamental. Não ensina a fazer perguntas, não gera desequilíbrios nem mexe com a sensibilidade. Isso a arte faz. Por isso tentam proibir.
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Fonte: Uol