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Anthony Bourdain era um tipo que encarava qualquer comida.
No episódio cinco da terceira temporada de “No Reservations”, ele vai à Namíbia e acompanha um grupo de homens do povo sã na caçada ao facocero, também chamado javali-africano –os fãs de “Rei Leão” devem conhecê-lo por Pumba ou hakuna matata.
Presa abatida, levam-na a um lugar com um braseiro no chão e procedem com a chacina do javali. Talvez por crueldade da produção do programa, mais provavelmente por sagacidade dela, reservam a Tony o reto do animal –ou, como ele o define, a “rodovia de chocolate”.
Os caçadores removem a extremidade final da tripa e a espremem para expulsar as fezes que lá estavam. Então a atiram no chão de brasas e cinzas. Sem passar uma água, sem meter toneladas de temperos, sem um salzinho sequer.
Neste momento, áudio e vídeo entram em descompasso.
O homem nas imagens (Anthony Bourdain) está paralisado pela incredulidade. Já na voz em off, gravada posteriormente, ele destila a verve irônica.
“Eu sei, neste momento, que estou condenado”, narra o apresentador. “E que não há como recusar.”
Enquanto a imagem mostra um homem perplexo, mas impassível, enquanto come ânus de javali, o som prossegue:
“Eu soo ingrato? Culturalmente insensível? Rude? Talvez. Mas há limites para o que eu tolero. Sim, até eu.”
Com o perdão pelo longo prelúdio, trouxe o episódio (exibido em 2007) para falar de algo bem maior que acontece agorinha.
Como reportou o colega Igor Gielow, autoridades estaduais do Rajastão detectaram contaminação em lotes de curry de duas gigantescas empresas de especiarias da Índia: para se ter uma ideia do tamanho do problema, ele pode comprometer 40% de todo o tempero que o país consome e exporta.
Suspeita-se que as indústrias estivessem aplicando, de forma ilegal, substâncias tóxicas para matar fungos e ovos de insetos.
A falta de asseio na comida indiana é um tópico delicado. Ou culturalmente sensível, para usar o repertório de Bourdain.
Já tem algum tempo que as redes sociais estão inundadas de vídeos francamente desabonadores para a comida indiana.
Num deles, uma fábrica de picolé deixa filmar a produção num lugar imundo e utilizando água barrenta.
Em outro, bem mais impactante, um grupo de pessoas prepara algum tipo de comida enquanto ratos circulam à vontade pelas dependências sob a total anuência dos humanos.
Tais vídeos, geralmente exibindo vendedores de rua, geram brigas intermináveis nos comentários –é a intenção.
Parte da arquibancada manifesta seu asco com veemência, não raro extrapolando o socialmente aceitável; a outra parte acusa os primeiros de xenofobia, racismo, intolerância e ignorância.
Voltando ao Tony Bourdain e sua reação ao churrasco de ânus de javali, o que está em questão são os limites. Onde acaba a dissonância cultural e onde começa o universalmente inaceitável, se o há?
Agrupar casos isolados de camelôs infectos para criar uma imagem negativa é xenofobia. Já o escândalo do curry, produto de exportação, induz à conclusão de que, Índia, de fato você tem um baita problema.
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Fonte: Folha de São Paulo