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Não sei se os leitores conhecem as engrenagens acionadas num jornal quando alguém como Ziraldo morre.
Em segundos, todos os jornalistas se dividem para produzir reportagens, análises, comentários e repercussões que busquem resumir a vida e a obra da pessoa. Mas aqui há um problema. No caso de Ziraldo, isso é quase impossível. Porque estamos diante de um gigante da cultura.
E não estou falando sobre a sua altura, que fazia qualquer criança achar que estava em frente a uma montanha. Nem dos braços largos, da voz simultaneamente retumbante, terna e maliciosa ou das sobrancelhas grisalhas e grossas, que serviam de cartão de boas-vindas. Ziraldo foi gigante pela obra que deixou.
O mineiro de Caratinga tinha um quê de artista renascentista. Jogava nas 11 posições do campo. Ele era incansável. Foi autor de dezenas de livros para crianças que marcaram a literatura infantojuvenil brasileira, mas atuou também como jornalista, pintor, escritor, editor. Onde houvesse palavra e imagem, Ziraldo buscava meter a mão, a tinta, o bom humor sempre afiado e se lambuzava.
Talvez o jeito mais eficiente de chegar perto de sua estatura neste momento seja publicar dezenas de textos, um para cada área que Ziraldo conseguiu abraçar, do Pasquim ao Menino Maluquinho.
Por isso, estas linhas vão falar só sobre literatura infantojuvenil —que de “só” não tem nada, porque é um universo dentro de sua produção.
Não é exagero dizer que Ziraldo faz parte do time que transformou o livro para crianças e jovens no Brasil. Está ao lado de Monteiro Lobato, Ângela Lago, João Carlos Marinho, Tatiana Belinky e de outros nomes que continuam na ativa, pulsantes, como Marina Colasanti, Ana Maria Machado, Lygia Bojunga e Eva Furnari, por exemplo, só para citar alguns desses autores.
Assim como todos eles, o pai do Menino Maluquinho nunca se contentou em criar histórias que apenas divertissem o público de forma engraçadinha. O artista foi muito mais a fundo do que isso. Chacoalhou a estética, a escrita, o visual.
Nos seus livros, muito por causa da formação como jornalista e cartunista, texto e imagem costumam ser inseparáveis. Hoje, essa conversa pode soar um pouco embolorada para quem estuda o livro ilustrado, que costuma ser definido pela relação de simbiose entre palavra e ilustração. Só que Ziraldo já estava fazendo isso nos anos 1960, período em que muita coisa ainda era mato.
Isso fica evidente já nas primeiras páginas de “Flicts”, seu best-seller e clássico de 1969. Lançado no auge da ditadura militar brasileira e durante a Guerra Fria, a obra conta a história da tal cor chamada Flicts, que é triste porque não acha o seu lugar no mundo.
Metáfora existencial e política sobre a eterna busca que temos pela nossa essência, a obra não opta pelo caminho fácil e indolor das imagens figurativas e fofinhas. Ziraldo cutuca a ferida e constrói um projeto gráfico com cores estouradas e formas geométricas cheias de vértices, arestas e ângulos que se dissolvem, se refazem e flertam com o abstrato, criando uma ponte ousada entre a literatura infantil, as vanguardas do início do século 20 e o que de mais fresco era produzido no design. Hoje em dia parece óbvio, com mil títulos assim disponíveis nas livrarias. Naquela época, no entanto, nem um pouco.
Esse respeito pela inteligência da criança acompanhou o escritor e cartunista durante quase toda a sua carreira. Suas publicações conquistaram, sim, uma legião fiel de fãs e coroaram Ziraldo como um dos reis de bienais e feiras do livro Brasil adentro, onde não era raro vê-lo durante quatro ou cinco horas autografando edições para crianças e adultos. Mesmo com ampla aceitação do público, porém, ele nunca foi devidamente reconhecido pelo entourage que define a chamada “alta literatura”.
Apesar de ter se candidatado a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, por exemplo, Ziraldo engrossou a lista dos que não foram vistos pela miopia imortal e tiveram o ingresso negado. Deixo o próprio autor falar sobre o tema.
“Se você consegue encantar uma geração, fica muito difícil de desaparecer. É o caso de Monteiro Lobato, Lewis Carroll, irmãos Grimm”, afirmou ele em 2016 a este jornal.
Ziraldo não conquistou apenas uma geração —mas dezenas delas ao longo de mais de 60 anos de carreira, período no qual formou leitores, produziu literatura combativa e viu suas criações no grupo de personagens que dão corpo à cultura. Isso vale mais do que troféus e medalhas.
Bruno Molinero é jornalista e autor do blog Era Outra Vez
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Fonte: Uol